terça-feira, 30 de setembro de 2014

Da laranjeira.

Oi, amor.

Já faz algum tempo que não te dedico as minhas linhas que nem sei por onde começar. Pensei que não faria isso nunca mais.

Não vai ser um texto poético. Não estou me preocupando em embelezá-lo.

É que, amor, aconteceu uma coisa e eu queria te contar: eu senti uma necessidade extrema de escrever para outra pessoa.
Mas como eu poderia dedicar minhas palavras-sentimentos a outra se não me deixei despedir de ti?
Não deu.

Preciso falar sobre minha impossibilidade de ouvir Cícero sem lembrar de uma manhã em que você pediu que eu não me mexesse porque a luz que vinha do corredor me deixava tão bonita. Você disse que podia morrer ali.
Preciso falar que, quando você me deixou, eu senti uma solidão tão grande que engoliu tudo à minha volta e que todas as noites quando eu saía do trabalho sentia vontade de chorar porque queria voltar pra casa e não pra São Bernardo do Campo, que foi onde me escondi pra me reconstruir. E sobre como esse esconderijo, essa solidão, começou a me consumir lentamente a ponto de me deixar prostrada na cama sentindo que todos os dias eram domingos sem planos. Sobre como isso me fez mal.
Preciso te contar como minha irmã me salvou, me botou de volta dentro da casa dos meus pais e me obrigou a encarar a realidade: vinte e um anos, uma profissão que não era a que eu queria e nenhum objetivo a ser alcançado.

Sei que você não acredita, mas meus guias me deram uma lição no último final de semana. Na noite de sexta-feira, quando cheguei do terreiro, comecei a passar muito mal. Doía tudo e eu vomitei a noite inteira. Sábado, meu corpo estava gritando e eu tive febre.
Então, mais uma vez, eles me reergueram. Às vezes, a gente precisa mesmo é de um chacoalhão pra acordar pra vida.

No domingo, acordei vazia de você, mas cheia de mim. Com um amor imenso pra dar e palavras na ponta da língua para dedicar a outras pessoas.

Eu não vou te esquecer. Você me deu os dois meses mais loucos da minha vida. Os mais intensos, os que mais me tiraram de mim. Eu respirei você e meu sangue, eu tenho certeza, era o mesmo que corria nas suas veias.
Eu sei que parece que não, que eu sou tão difícil de me entregar e demonstrar sentimentos quando não estão escritos que fica difícil acreditar em mim.
Mas durante esses dois meses eu fui absolutamente sua, sem nenhuma vergonha de dizê-lo.
Sinto muito por não conseguir ser desinibida como você esperava que eu fosse.

No sábado, pela primeira vez, olhei pra uma foto de nós duas sem sentir dor.
Abri todos os arquivos de vídeo em que você aparecia, inclusive aquele da primeira vez em que saí com as crianças, sem sentir vontade de me afundar.
Senti um calorzinho de saudade. Fiquei absurdamente feliz por ter dividido com vocês aqueles momentos.

Lembro os nossos planos. A nossa casinha no mato, mas não tão longe da cidade. Os filhos que teríamos em alguns anos.
Você foi minha felicidade e é o passado mais bonito que eu jamais poderia sonhar ter.

Amor, eu sempre te chamarei assim. Nossos caminhos estão entrelaçados demais para ser diferente.
E mesmo que não nos vejamos mais, toda a vez que eu ouvir "Vagalumes Cegos" lembrarei que você está comigo.

As minhas próximas palavras não serão suas. Talvez eu nunca mais as dedique a você.
Mas preciso que você saiba e que, por favor, não se esqueça: eu também podia morrer ali.


Com todo o amor e desapego do mundo,

                                                                  Laranjeira.

(Taboão da Serra)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

S o r o r i d a d e.

Esse texto é um agradecimento.
É dedicado a uma pessoa em especial, mas pode ser estendido a quem se sentir tocado por ele.



Obrigada, companheira, por me fazer confrontar assim, no cru, esse processo de desconstrução a que decidimos nos submeter em busca de um mundo mais livre.
Obrigada pela sinceridade nas suas palavras, obrigada por não esconder que sentiu ciúme de mim, que talvez tenha me odiado por alguns segundos, e que isso te causou sofrimento.

Pensei que nós nunca tocaríamos nesse assunto e sentia, ao mesmo tempo, que nunca nos pertenceríamos verdadeiramente como irmãs, como companheiras nessa luta, se não tocássemos nessa ferida - então, muito obrigada por tê-lo feito. Eu talvez nunca tivesse tido a coragem.

É fato que o sentimento de competição está arraigado em nosso psicológico. O sentimento de posse está ali, latente.
O ciúme que você sentiu é normal. E só agora eu consigo imaginar como pode ter sido absolutamente devastador para você. Como superá-lo pode ter sido tão dolorido.

Irmã, você me contou o momento exato em que me amou, apesar daquela pedra no nosso caminho:
Você me abraçou, naquela quadra cheia de gente bebendo cerveja.
Preciso que saiba como eu me senti livre! Como eu me senti sua! Como fui, naquele momento, completamente igual a você!
Minutos antes, eu te disse, você estava tão na defensiva comigo que eu estava entregando os pontos. Pensava "Ela nunca será minha companheira!", sem nem desconfiar que já o éramos.

Obrigada, companheira, por ter me puxado para aquele aperto libertador.

Obrigada por ser minha irmã.

Obrigada por ter superado comigo esses anúncios e ensinamentos machistas que nos bombardeiam o tempo inteiro: nós não somos inimigas. A vida não é competição.

Os nossos problemas, os nossos medos, são tão iguais. As lágrimas que você chora todos os dias são tão parecidas com as que molham meu travesseiro todas as noites!
Me vejo tanto nas suas palavras.
Eu preciso que você saiba que eu quero te ajudar. Eu estou aqui para te ajudar.

E preciso também que você me ajude. Me ajude a enfrentar essa vida tão dura, assim como me ajudou a ver que aquele abraço nos libertou ao mesmo tempo.

Companheira, obrigada por ontem. E obrigada por todas as experiências que nos trouxeram até aqui, pelos nossos machucados e pela superação deles.

Saiba que você é meu espelho. Que quando eu olho pra você, eu enxergo a mim.
Que as suas feridas também me doem e que podemos tratá-las juntas.
Que, nessa luta contra as opressões do mundo, estou segurando a sua mão.

Companheira, irmã: obrigada! Obrigada por se permitir ser minha. Obrigada por me permitir ser sua.
Obrigada por sermos, justamente por isso, absolutamente livres.

(Taboão da Serra)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Casual.

Tudo embaçado.
Lembro você mordendo meu ombro, lembro de gemer no seu ouvido.
É tarde e ninguém nos ouve.
Sinto seu corpo sobre o meu, sua mão pressionando levemente meu pescoço.
Ah, os seus olhos semicerrados!
É tarde.
Você se despede às pressas,
dá um sorriso e vai embora sem pensar no amanhã.
Vai e me deixa vazia de todas as mágoas que eu cultivava antes de você chegar.
Não sei para onde foi nem se vai voltar um dia,
mas que diferença faz?
Eu voltei.



(São Bernardo do Campo, 13 de abril de 2014)

O machismo etecetera e tal.

Levei exatos 20 anos, 11 meses e 8 dias pra tomar coragem de escrever e isso se deu, que ironia!, na véspera do “dia internacional da mulher”.
Levei muito tempo para perceber que, mais que minha vontade, é minha obrigação.

É uma obrigação porque eu não posso mais ser violada, nem eu nem tantas outras mulheres.
É uma obrigação porque a sociedade me estupra desde que o médico disse que eu era 
uma menina.

Eu sou violada desde o útero da minha mãe, quando os conhecidos me compravam coisas cor-de-rosa. Eu sou violada desde a pré-escola, quando me ensinaram que azul não é cor de mulher. Que menina brinca de boneca e VAI ser mamãe e menino brinca de carrinho, joga futebol e bolinha de gude. Eu fui violada quando me deram de presente um joguinho de panelas (Cor-de-rosa de novo ou, no máximo, lilás!).
Cresci sendo violada, porque me ensinaram que a Barbie é mulher do Ken e não existe outra possibilidade de amor dentro de tanta vida: Amor é coisa fixa e congelada, amor é coisa pronta que a sociedade te impõe, então sufoca esses sentimentos e impulsos, mulher, e vai lavar a louça.

Quando você é mulher, dois amores (ou mais) não podem coexistir.
Lésbica não existe, é só charminho para chamar atenção dos homens.
O machismo é tão opressor que homem não pode ser gay, já que gay é “homem-fêmea”, “bonequinha”, “afeminado”. Um homem que se preze não se rebaixa à situação de mulher, então, ei, você aí: arrume uma fêmea, tenha três filhos e seja infeliz – de preferência, calado.

Eu fui violada no meu primeiro emprego quando fui de vestido e tive que ouvir piadinhas o dia inteiro sobre a peça. Vestido de lã, mangas nos punhos – o que não faz a menor diferença. Se eu estivesse de calças, elas não cessariam porque não eram sobre o vestido, as piadas eram sobre mim. De qualquer forma, nunca mais o usei naquele lugar.
Eu, e tantas mulheres, fomos (e somos!) violadas pela sociedade quando nos ensinaram que mulher não tem amiga: a vida é competição – competição pelo melhor sapato, pela melhor bolsa, pelo melhor macho.

A mídia nos viola todos os dias quando nos grita que estamos muito gordas (ou magras demais), muito vestidas (ou despidas demais), sem vaidade (ou vaidosas demais). Quando nos dão um milhão de dicas de como satisfazer o nosso homem na cama, mas não escrevem uma linha sobre a possibilidade de sermos felizes e completas sem “o príncipe encantado”. A história do príncipe encantado também é uma violação.

Mas mesmo vivendo isso a vida inteira, foi ontem que eu percebi o lixo em que a sociedade está inserida (ou que ela é?). Por causa de ontem eu decidi botar tudo isso no papel (e agora na tela).
Porque é chocante perceber que nem no trabalho, uniformizada, (representando a empresa, como muitos gostam de colocar), eu sou respeitada. Porque, apesar daquele símbolo, eu sou mulher e mulher é sexo, mulher está à disposição.

O fato é que eu fui, com uma colega, repor uma escada rolante que tinha desligado e ajudar a descer uma criança numa cadeira de rodas. Minha colega se afastou de mim por dois minutos, talvez nem isso, e foi o suficiente para que dois homens que subiam a escada rolante ao lado se achassem no direito de mexer comigo. Porque eu sou mulher, estava sozinha e tinha batom nos lábios. Então eles tinham o direito de falar comigo e se referir a mim como “a gostosinha do metrô”. Eu estava ali, então estava pedindo, não é?

Não foi piadinha. Não foi elogio.

Foi opressão descarada, machismo cru.

Foi quase como um soco no estômago. Você está ali trabalhando. Nunca está esperando ouvir esse tipo de coisa. Meu coração acelerou e eu não conseguia parar de tremer.
Doeu porque eu vi: vi claramente que o mesmo cara que me chamou de gostosinha, vai oferecer rosas e bombons amanhã, desejando parabéns num dia para oprimir, sem culpa, nos outros 364. Continuo vendo: vejo que esse cara não é um só. Que, ao mesmo tempo em que ele me ofendia, outros caras (e mulheres) ofendiam outras funcionárias dos metrôs, das lojas de shoppings, das empresas de limpeza, das padarias. Ofendiam mulheres que andavam na rua, indo e voltando do trabalho e buscando os filhos na escola. Em São Paulo e em Ribeirópolis. No Brasil e no resto do mundo.

Pois é, o machismo me sacaneou outra vez ontem. E vai me sacanear hoje de novo, do mesmo jeito que me sacaneou durante os últimos 20 anos. Ontem foi só mais uma vez que o machismo se esfregou na minha cara... Mas é bom ele ficar esperto, porque dessa vez ele me pegou de olhos abertos. 

E eu não vou mais fechar.


(São Bernardo do Campo. Data de 07 de março de 2014 e é uma singela homenagem a hipocrisia.)

Vovó: sobre dona Adélia, sobre mim.

Tô engolindo tudo, empurrando com café quente goela abaixo. A dor desce queimando.
Mas eu sei que preciso digerir tudo isso que aconteceu. E sei que não vai ser fácil, mas não posso voltar atrás.

É fato que ela foi embora num domingo de fevereiro. À tarde. Ainda tinha sol, mas estava tudo escuro. Você, que lê, entende?
Comecei 2014 sentada ao lado da cama, segurando a mãozinha calejada dela, pedindo a Deus que ela ficasse pra sempre, como prometeu que ficaria. Comecei o ano sentada ao lado da cama, segurando a mão dela, como ela fez comigo tantas vezes nos 20 anos que passamos juntas.

A verdade é que eu mudei muito daquele dia pra cá. Vi minha melhor amiga partir aos poucos e vi que ninguém ao redor podia mudar o que estava acontecendo. Isso endurece a gente.
Lidei com a perda dia após dia durante aqueles quase dois meses, mas me recusei a senti-la.
Também não posso dizer que senti no momento derradeiro. Não me deixei sentir talvez por não querer acreditar. Sempre me recusei a sentir muitas coisas - "Tá tudo bem!", mesmo quando não estava.

Mas eu tô me desconstruindo. Tô pegando cada pedaço mal resolvido de vida e dissecando. Tô sentindo cada perda - de oportunidades, de pessoas e de mim mesma.

Tô quieta, me deixe estar. Porque pra conquistar a dor eu preciso de silêncio.
Hoje dói, principalmente, porque ela não está. Estou sentindo essa falta em cada pedaço de mim. Porque, se ela estivesse, eu poderia deitar a cabeça no seu colo enquanto desfazia o emaranhado de sentimentos que trago cá dentro.
Mas ela foi. Era um domingo. Tinha sol, mas estava frio - dá pra entender?

Hoje é segunda-feira. Também faz sol. E eu sinto imensamente a falta dela.

Não acho que sofro mais que os que sentem fome, ou que os que sentem frio, e não ouso dizer que entendo a angústia das crianças num abrigo esperando uma família que as queira. Não me coloco como vítima da vida enquanto palestinos são bombardeados em Gaza e mulheres morrem em decorrência de abortos clandestinos.

Eu sei da miséria no mundo.

Mas hoje essa é a minha dor e sinto que ninguém pode diminuí-la - a ninguém dou esse direito. De qualquer forma, tenho consciência de que não posso tratar das feridas dos outros se não conseguir lidar com as minhas próprias. Tô enfiando o dedo nesse machucado, tô tirando todos os vermes que estavam se aproveitando dessa carne maltratada - higienizando, colocando ataduras limpas.

Tô impaciente, tô chata e não espero que alguém compreenda.

Minha heroína se foi numa tarde de domingo em fevereiro de 2014 e agora que estou digerindo esse fato posso tentar ser a heroína de outras pessoas. Posso ser a heroína da minha própria vida - como ela, junto dos meus pais, me criou pra ser.


(São Bernardo do Campo, 21 de julho de 2014 - uma segunda-feira ensolarada em que ventava aqui dentro.)

Resposta.

Não tem jeito: deixa as palavras saírem uma vez e elas não aceitam mais viver dentro de você. Elas se embolam na sua cabeça, gritam por dentro de ti e quase te levam à loucura e aí, não importa se sua mão direita está imobilizada e você tem prova no dia seguinte: você só tem paz quando as deixa escapar pela mão esquerda para aparecerem logo em seguida na tela do computador (mesmo que isso leve o dobro do tempo que levaria se a mão direita estivesse boa).
Eu só queria pedir decência. Não cometa o erro de outrora – não me prometa o que não pode cumprir.
As feridas todas estão latejando. Tô trocando de pele, tô trocando de sonhos, refazendo meus planos e cuidando do essencial. Então, não interrompa. Deixa o tempo passar, que ainda tem muito de você em mim e não tenho vergonha de dizê-lo. Deixa estar, que ainda estou voltando pra casa - não interrompa.
Eu só queria pedir: não faz de mim poema, porque sei que posso fazer isso sem sua ajuda – posso fazer sozinha. Eu nunca soube escrever verso, sinto muito!, mas minha prosa também tem poesia.


(São Bernardo do Campo, 22 de julho de 2014)

Da menina.

É que ela é uma menina e está ferida.
A ferida está dentro e ninguém vê - ferida que, por não ser vista, não é considerada: se não sangra, então não existe.
A menina, tão colo dela mesma, está cansada. Cansada dos lenços de papel, cansada das lágrimas no final do dia, cansada da solidão de estar sozinha não-estando.
Ela continua. Tropeça, cai, levanta. E anda: um passo e depois o outro.
O sol brilha, mas a cega e ela vai tateando: devagar, incerta.
Ela segue.


(Taboão da Serra, 04 de julho de 2014)

Do meu primeiro dia depois de você.

Olha, amor, nem todas as minhas palavras são suas, mas as próximas são. E são sinceras, sim. São verdadeiras, são concretas porque o que eu sinto não flutua e talvez eu não seja tão maleável quanto tu pensas. 
É que eu sempre vou me adaptar, sempre estarei à procura de um jeito novo de curar a ferida - é que lá no fundo eu sei que tudo vai ficar bem, que tudo já está bem.
É que amei ontem, amo hoje e é muito provável que continue amando amanhã. Só que mais leve. Só que mais solta.
A verdade é que eu não preciso de muito pra seguir. Uma caneca de café agora há pouco me acordou (pra vida), me avisou que é um novo dia e que meu mundo ainda tá aqui: minhas velas, minhas saias coloridas no armário, meus livros - tudo tão impregnado de mim e vazio de você que dói, dói por um instante ou dois, até eu lembrar que não dá pra fugir de quem se é. Eu queria ser Laura (ou Ana, ou Marcela), mas não deu. Tem Bárbara demais aqui. Eu posso ser pequena demais pro seu mundo, mas caibo certinho no que escolhi pra mim.

(São Paulo, 18 de julho de 2014)

É.

É que às vezes a gente se apega fácil, se doa fácil. É que às vezes as pessoas não percebem ou não querem perceber.
A gente vai ficando pelo caminho, pedacinhos de nós semeados nas pessoas - pedacinhos dos outros semeados em nós. E é bom de dar febre, não ser você-sozinho é bom que dói.
Ruim é quando pegam de volta o pedaço de si que te deram e fica o vazio.
É quando as palavras não dizem mais nada e decide-se não falar. É quando o abraço não é bálsamo e não se abraça pra não deixar a distância visível, palpável - não tem nenhum sinal, mas nós conseguimos captar o recado.

Tá frio lá fora, tá frio cá dentro. O vestido no armário é tão bonito que faz pena não usar.
O sorriso no espelho era pra ser tão genuíno. É.



(Taboão da Serra. Data de 11 de julho de 2014: revirando e revivendo meus escritos.)

Carta a um Ex-amor.

    Eu descobri que não te amo. Mas até ontem podia jurar que te amava.
    E sentia que cada célula do meu corpo vibrava só de ouvir teu nome.
    Evitava falar sobre nós duas. Evitava pensar em nós duas. Morria de medo de que alguém percebesse esse amor tão escondido, mas tão latente.
    Você sumiu da minha vida há muito tempo e levou tudo com você. Chorei por uma semana, depois jurei que nunca mais derramaria uma lágrima por sua causa... Não sei se você se lembra, mas eu sou boa nisso de promessas. Costumo cumpri-las, porque não suporto a ideia de que minha palavra foi dada em vão. 
    Quando sequei tudo o que aquela tempestade molhou, prometi que seria outra. E, por um tempo, realmente fui.
    Só que você voltou. Voltou bagunçando tudo, colocando o teto de ponta-cabeça, arrastando tudo com esse furacão que você é. E eu quase, mas muito quase, me entreguei a essa doce loucura que é estar contigo. Mas algo me impediu e não foram seus defeitos nem todas aquelas lágrimas que eu derramei.
    O problema (problema?) é que eu me olhei no espelho. Vi minha boca pequena, meus cabelos agora curtos e claros, meus olhos ligeiramente rasgados e esse sorriso meio de lado que só apareceu quando eu me reconstruí depois de você. Reparei nos cinco quilos que ganhei e também nas pequenas marcas de expressão que já começaram a surgir no meu rosto apesar da pouca idade. Observei atentamente a altivez do meu queixo, o desenho do meu nariz, minhas orelhas um pouco pontudas.
    Coloquei um vestido roxo decotado e vi que, sim, eu sou sensual e não importa o que digam as revistas. Não importa o que disse você há pouco mais de um ano, quando reapareceu por um segundo para tentar quebrar meu coração novamente e sumir logo em seguida.
    Eu olhei para os livros em minha mesa, tão diferentes daqueles que eu lia na sua época. Olhei para os CDs na prateleira, todos com músicas que marcaram alguma parte da minha vida. Passei os olhos ao redor e vi meu quarto pequeno, mas cheio de mim: a cama de solteiro com o urso que ganhei da minha irmã; a imagem de Santa Bárbara na cabeceira; a oração a Santa Sara emoldurada na parede e, pairando acima de tudo, um filtro dos sonhos.
    E aí eu descobri que não te amo. Que você não se encaixa.
    Olha bem para a mulher linda que eu me tornei. Aprende comigo a juntar os pedaços do que já foi e seguir em frente.
    Eu pensava que devia continuar te amando só porque te amei durante muito tempo. Pensava que não conseguiria seguir sem você. Tolice! Bobagem!
    Mais do que descobrir que não te amo: eu descobri que amo a dona da imagem refletida no espelho do meu quarto. Com todas as falhas, com todas as cicatrizes, com cinco quilos a mais e o sorriso meio de lado.
    E tenho certeza de que agora que eu me percebi, estou pronta para ser percebida por outras pessoas.
    Do nosso amor não me arrependo e a você só tenho a agradecer. Pode ser que nos encontremos em outra esquina, quando você descobrir que não me ama. Talvez aí a gente volte a se amar. (Mas quem vai saber?)


                                                                                         Da antes sua


                                                                                                      Bárbara.

(São Paulo. Escrita em 19 de janeiro de 2014.
 Já foi postada aqui, mas apaguei quando da reformulação do blog.)

Ressaca.

Hoje eu acordei triste: cara limpa, olhos inchados, peito vazio.
A tristeza transbordou pelos olhos na noite passada, anos de mágoas enterradas regaram o travesseiro e o som da angústia preencheu o apartamento.
Feridas mal cicatrizadas deram as caras ontem a noite - e jorrou sangue: quente, espesso.
Foi desespero. Foi solidão.
Hoje eu acordei triste. E sozinha.
Mas tendo absoluta certeza de quem eu sou.



(Taboão da Serra. Postado pela primeira vez em 26 de julho de 2014, no Facebook. Postado aqui agora por motivos de: ainda faz sentido.)

Conclusão.

A flor de abandono que você plantou (e cultivou com tanto afinco) brotou, cresceu, floriu - e destruiu minha roseira. Não tem nada que você possa fazer pra reparar: rosa de outro pé é outra vida.
Algo em mim não se adaptou: colhi algumas dessas flores cinzentas que substituíram minhas rosas vistosas e fiz um arranjo, mas elas não ficaram bem na minha sala de estar colorida.
Da próxima vez, vou procurar um lugar seguro pra semear meu jardim - longe dessas flores funestas que ensombrecem meu dia e cospem pétalas-palavras-hostis.
Descobri que não tem jeito: amor a gente só acha onde tem.


(Taboão da Serra)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Quero falar sobre libertação.

A sociedade nos impõe muitas coisas. Nos grita que, aos dezoito, já devemos ter maturidade suficiente para decidir o que faremos pelos próximos 50 anos, mas nos anula, na mesma idade, em diversos outros aspectos – como conhecer a própria identidade de gênero ou orientação sexual.


Aos dezoito, eu escolhi. E eu fracassei.
E agora tá tudo bagunçado, tá tudo dolorido.
Me embalei em sonhos que não eram de todo meus e voltar a mim está sendo custoso. Dói.
Dói porque é como se eu não me conhecesse. Dói porque é como se eu fosse ingrata por ter deixado (ou feito) meus pais investirem tanto em mim pra não devolver a eles uma filha advogada. Dói por me ver exatamente assim: um investimento que traria lucros em longo prazo.
Dói por eu ter consciência de que nós não pertencemos a nós mesmos.
Cheguei à conclusão de que todos somos mais ou menos como uma colônia. E eu sou uma colônia travando a sua guerra de independência contra um país opressor.
Meus pais são o meu país opressor, mas às vezes acredito que eles não têm consciência de que estão oprimindo. (Ou eu prefiro pensar assim – por favor, me deixe sonhar!).

Eu fracassei, mas não me entreguei ao fracasso. Confesso que há dias em que eu não quero sair da cama. Eu acordo e quero chorar, então durmo de novo pra não doer. Pra enganar.
Mas não me entreguei. Tô na luta, vou atrás do meu sonho. Mesmo que meu sonho de ser professora me pague muito menos do que o sonho deles de ter uma filha advogada. Ou que a minha realidade de metroviária.
Porque sonhos, assim, não tem preço. Não deveriam ter.

Conquistar essa terra árida de “mim-mesma” não está sendo fácil. Não está sendo simples.
Conquistar a dor e senti-la inteira, tomar posse de si mesmo – com todas as mágoas, com todas as lembranças, com todas as alegrias – é trabalhoso. É um passo de cada vez. É um dia, depois o outro e o seguinte a gente vê depois.
E parte disso é assumir: eu fracassei perante a sociedade. Por seguir a risca os seus padrões, estou infeliz.
Estou infeliz porque vivi e propaguei muitas ideias tortas dessa cultura maldita durante tanto tempo da minha vida.

Sou fracassada:
Não quero um corpo sarado, muito menos quero ser magra – engula isso, sociedade.
Arrumar um homem que me banque e me considere uma propriedade não é um objetivo da minha vida. Aliás, não quero homem - lésbica que sou. Mas mais que isso (livre de gênero):
 eu não quero algemas, quero amor: acredite, nunca foi um desejo dessa colônia deixar um país opressor para quedar sob o julgo de outro.
Tenho vinte e um anos e não faço ideia do que fazer daqui pra frente. E, se for levar em conta a expectativa de vida no Brasil, ainda tenho uns 58 anos pela frente.


Queria muito cultivar um jardim.
Acho que vou florir.


(Taboão da Serra)