terça-feira, 9 de setembro de 2014

O machismo etecetera e tal.

Levei exatos 20 anos, 11 meses e 8 dias pra tomar coragem de escrever e isso se deu, que ironia!, na véspera do “dia internacional da mulher”.
Levei muito tempo para perceber que, mais que minha vontade, é minha obrigação.

É uma obrigação porque eu não posso mais ser violada, nem eu nem tantas outras mulheres.
É uma obrigação porque a sociedade me estupra desde que o médico disse que eu era 
uma menina.

Eu sou violada desde o útero da minha mãe, quando os conhecidos me compravam coisas cor-de-rosa. Eu sou violada desde a pré-escola, quando me ensinaram que azul não é cor de mulher. Que menina brinca de boneca e VAI ser mamãe e menino brinca de carrinho, joga futebol e bolinha de gude. Eu fui violada quando me deram de presente um joguinho de panelas (Cor-de-rosa de novo ou, no máximo, lilás!).
Cresci sendo violada, porque me ensinaram que a Barbie é mulher do Ken e não existe outra possibilidade de amor dentro de tanta vida: Amor é coisa fixa e congelada, amor é coisa pronta que a sociedade te impõe, então sufoca esses sentimentos e impulsos, mulher, e vai lavar a louça.

Quando você é mulher, dois amores (ou mais) não podem coexistir.
Lésbica não existe, é só charminho para chamar atenção dos homens.
O machismo é tão opressor que homem não pode ser gay, já que gay é “homem-fêmea”, “bonequinha”, “afeminado”. Um homem que se preze não se rebaixa à situação de mulher, então, ei, você aí: arrume uma fêmea, tenha três filhos e seja infeliz – de preferência, calado.

Eu fui violada no meu primeiro emprego quando fui de vestido e tive que ouvir piadinhas o dia inteiro sobre a peça. Vestido de lã, mangas nos punhos – o que não faz a menor diferença. Se eu estivesse de calças, elas não cessariam porque não eram sobre o vestido, as piadas eram sobre mim. De qualquer forma, nunca mais o usei naquele lugar.
Eu, e tantas mulheres, fomos (e somos!) violadas pela sociedade quando nos ensinaram que mulher não tem amiga: a vida é competição – competição pelo melhor sapato, pela melhor bolsa, pelo melhor macho.

A mídia nos viola todos os dias quando nos grita que estamos muito gordas (ou magras demais), muito vestidas (ou despidas demais), sem vaidade (ou vaidosas demais). Quando nos dão um milhão de dicas de como satisfazer o nosso homem na cama, mas não escrevem uma linha sobre a possibilidade de sermos felizes e completas sem “o príncipe encantado”. A história do príncipe encantado também é uma violação.

Mas mesmo vivendo isso a vida inteira, foi ontem que eu percebi o lixo em que a sociedade está inserida (ou que ela é?). Por causa de ontem eu decidi botar tudo isso no papel (e agora na tela).
Porque é chocante perceber que nem no trabalho, uniformizada, (representando a empresa, como muitos gostam de colocar), eu sou respeitada. Porque, apesar daquele símbolo, eu sou mulher e mulher é sexo, mulher está à disposição.

O fato é que eu fui, com uma colega, repor uma escada rolante que tinha desligado e ajudar a descer uma criança numa cadeira de rodas. Minha colega se afastou de mim por dois minutos, talvez nem isso, e foi o suficiente para que dois homens que subiam a escada rolante ao lado se achassem no direito de mexer comigo. Porque eu sou mulher, estava sozinha e tinha batom nos lábios. Então eles tinham o direito de falar comigo e se referir a mim como “a gostosinha do metrô”. Eu estava ali, então estava pedindo, não é?

Não foi piadinha. Não foi elogio.

Foi opressão descarada, machismo cru.

Foi quase como um soco no estômago. Você está ali trabalhando. Nunca está esperando ouvir esse tipo de coisa. Meu coração acelerou e eu não conseguia parar de tremer.
Doeu porque eu vi: vi claramente que o mesmo cara que me chamou de gostosinha, vai oferecer rosas e bombons amanhã, desejando parabéns num dia para oprimir, sem culpa, nos outros 364. Continuo vendo: vejo que esse cara não é um só. Que, ao mesmo tempo em que ele me ofendia, outros caras (e mulheres) ofendiam outras funcionárias dos metrôs, das lojas de shoppings, das empresas de limpeza, das padarias. Ofendiam mulheres que andavam na rua, indo e voltando do trabalho e buscando os filhos na escola. Em São Paulo e em Ribeirópolis. No Brasil e no resto do mundo.

Pois é, o machismo me sacaneou outra vez ontem. E vai me sacanear hoje de novo, do mesmo jeito que me sacaneou durante os últimos 20 anos. Ontem foi só mais uma vez que o machismo se esfregou na minha cara... Mas é bom ele ficar esperto, porque dessa vez ele me pegou de olhos abertos. 

E eu não vou mais fechar.


(São Bernardo do Campo. Data de 07 de março de 2014 e é uma singela homenagem a hipocrisia.)

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