segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Pode sim: fraquejar.

Alguém que eu amo está morrendo.
Alguém que eu aprendi a amar de forma tão fácil que me assusta pensar que ela pode deixar de existir nesse plano de uma hora pra outra.

O coração dela está inchado, machucado. Todo o possível está sendo feito pra que ela não vá - confio nos homens de branco e confio nos pretos-velhos, nos caboclos, nos baianos.
Mas é fato que ela está, por enquanto, por um fio. É doloroso admitir. É difícil aceitar.

Lembro a primeira vez que os nossos olhos se cruzaram assim, bem no horário de pico, na estação Santa Cruz do Metrô de SP.
Os olhos mais profundos do mundo. Um poço em que eu me afundei dali pra frente.
Levou tempo pra que as coisas se encaixassem. Ela com as feridas dela pra curar, eu com as minhas - a gente se sabia, mas não era a hora de se ter assim na vida uma da outra.
Algumas tentativas frustradas, deixamos pra lá por um tempo.
Até que não sei como, estávamos juntas. Nos vendo todos os dias. Conversando sobre tudo, falando sobre nada. Rindo e chorando.

Se eu precisasse estipular o tempo diria que levei um mês pra amar essa mulher com todas as minhas forças.
Quando eu percebi, já tinha ido. Ela já era minha companheira, minha melhor amiga.
E quando eu percebi, ela percebeu que eu tinha percebido porque nunca fui boa em esconder as coisas dela.

Um tempo atrás, brigamos feio. Mas isso não é demais, porque nós sempre brigamos... Todos os dias, o dia todo, só pra poder fazer as pazes.
Só que, dessa vez, quando fizemos as pazes ela me contou que o coração dela estava maior que o normal.
Não quero dar detalhes técnicos, eu não sei os termos médicos para o que está acontecendo.

Só sei que ela pode ir embora. E que hoje é o aniversário dela.
Então, nesse aniversário, eu gostaria de dizer:

Querida, você pode ser fraca. Você pode chorar, você pode querer desistir. Você pode perder a fé.
Eu não vou te julgar.
Não vou te julgar se você optar por desistir desse tratamento. Muito pelo contrário, estarei segurando a sua mão em todos os momentos em que você precisar de mim por perto.
Ninguém diz pra gente que a gente pode desistir, e chorar, e machucar os joelhos, e machucar os sentimentos, e sangrar, e não querer sair da cama.
Eu vim te dizer: não tenha medo de fraquejar. Os meus joelhos estão esfolados mas eu aguento por nós duas.
Querem tanto vender a ideia da persistência que não percebem que persistir cansa. E eu sei, amor, que você está cansada e quer beber mais água e colocar mais sal na comida. Eu sei que você adora bacon e peço desculpa por ter sido tão egoísta e ter dito que você é infantil - eu só não queria te perder.
Eu pensei muito sobre isso de perder. Eu tô sempre falando de liberdade, de libertação, e acabei tropeçando nessa pedra: a gente só sente que perde quando acredita que algo é nossa propriedade.
Você está sofrendo e eu te amo demais pra pedir que você continue contra a sua vontade só porque sou mais feliz com você aqui.
Se você quiser desistir, eu te apoio. Se eu surtar, prometo não fazê-lo na sua frente.
Se você preferir seguir lutando, eu prometo te ajudar a lavar os cabelos enquanto estiver tudo tão difícil e dolorido como agora, que cada movimento do seu corpo se tornou uma batalha.
Sabe o pequeno príncipe? Você é o meu.

(Taboão da Serra)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Lesbianismo e (r)existência: porque é importante deixar a mágoa falar.

Eu queria dormir.
Eu preciso dormir.
Mas não consigo. Preciso contar a vocês o que aconteceu agora há pouco, preciso dizer que caiu a ficha. E caiu pesado, fazendo barulho, secando de vez meus olhos.

Há pouco tempo, assumi em um dos meus perfis em rede social a minha relação atual.
É uma relação complicada, uma relação que não sei onde vai dar - mas não é sobre ela que preciso falar.

A questão é que eu me entendo como lésbica desde os 13 anos.
Foi um entendimento forçado e dolorido. Descobriram antes de eu mesma me entender, eu ainda brincava de bonecas e de repente minha vida virou um turbilhão.
Minha avozinha dizia que sempre soube. (Ah, vó, se a senhora soubesse a falta que seu colo está me fazendo agora!)

De qualquer forma, desde os 13 anos eu vivi em família a farsa do "eu finjo que não sou, você finge que não sabe".
Há algumas semanas assumi publicamente essa relação.

Hoje, estava deitada me preparando para o cochilo da tarde - que tiro com muito gosto sempre que trabalho a noite no terreiro - quando meu pai pediu licença e entrou. Disse que precisava conversar.

Daí, eu já me armei. Eu já sabia cada palavra que eu ia ouvir.
E tenho certeza que todos que passaram e passam por essa situação sabem também.

Eu só queria dizer que cheguei ao ponto em não me importo mais.
Estou tão cansada das lágrimas dos outros, das limitações dos outros - sempre relegando as minhas próprias!

"Sua mãe teve uma criação difícil", "é difícil pra gente": eu não me importo.
Durante muito tempo me importei, mas agora estou tão calejada que posso ouvir essas frases durante horas como se eu não estivesse ali.

Foram muitas noites chorando sozinha, muitas dúvidas que nunca pude tirar com ninguém, muitos colos que me negaram, muitos "vista-se do que eu quero que você aparente"... Foram tantas situações que eu superei sozinha, foram tantas as vezes que fui eu mesma os pais que minhas amigas sempre tiveram, que agora... Não faz mais diferença.

"Quero que você esteja bem": eu não estou. E vai levar muito tempo para eu estar. Vai levar muito tempo pra que eu possa finalmente olhar pras pessoas e conseguir dizer o que eu realmente quero. Vai levar muito tempo pra que eu não precise escrever num blog por não conseguir verbalizar as coisas que sinto e penso olhando nos olhos do meu interlocutor.

A diferença agora é que eu descobri, não sem dor, que não preciso do colo de quem sempre esteve distante. A diferença é que agora eu tô tão bem resolvida comigo, tão consciente das minhas limitações e dos meus desafios, que prefiro seguir sozinha.

O abraço ao final foi desprovido de sentimento (da minha parte), porque agora eu não preciso da aceitação de ninguém. Eu não procuro aprovação.
Eu olho pra mim e vejo uma jovem cheia de dúvidas, com muitos medos, com muitas inseguranças, com muitas feridas - algumas cicatrizadas, algumas em processo de cura, mas a maior parte em carne viva.
Tem dias que eu saio do trabalho e não quero voltar pra casa. Tem dias que sorrir é penoso. Tem dias que não quero abraço, não quero palavra.
Eu tenho consciência de que preciso trabalhar muitas coisas em mim.

Eu entendo que é muito fácil dizer "eu acredito em você" quando as maiores provas já passaram.

Então... Eu não perdoo. Não perdoo as noites que perdi, nem as noites mal dormidas. Não perdoo as lágrimas que marcaram a minha adolescência, não perdoo os dilemas que passei sozinha.
E digo isso com muita tristeza, porque eu queria perdoar.

Se você esbarrou nessa página e chegou ao final dessa postagem e está na fase em que tudo é tão mais díficil, em que tudo é tão dolorido e que você precisa ser seu próprio apoio, eu te digo com todo o amor do mundo: uma hora passa.
Passa de um jeito ou de outro.
Mas passa.

Se você esbarrou nessa página e chegou ao final dessa postagem e é pai ou mãe de homo/bi/trans, eu te peço: não deixe acontecer com vocês. É dolorido demais não se importar, não é fácil não se importar - pras duas partes.
Salve essa relação enquanto é tempo. Mas, por favor, saiba: a vida dos filhos NÃO É SOBRE VOCÊS.

Ah e pros meus pais (caso esbarrem também nesse canto tão meu): eu ainda amo vocês.

(Taboão da Serra)

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Das coisas que eu acho maravilhosas.

Folgar na quarta-feira, eu acho lindo.
Receber fotos da minha sobrinha do coração pelo WhatsApp então, nem se fala.
Acordar às 11h e espreguiçar bem gostoso e ter o resto do dia pra não fazer absolutamente nada.
Ouvir de uma senhora de 85 anos que eu sou um anjo, da moça sorridente que trabalha na padaria que meu cabelo está lindo, de uma companheira que o que importa pra ela é que eu esteja viva.
Sentir o sol queimando o asfalto e refletindo o calor no meu corpo.
O miado dos gatos aqui de casa.
O cheiro de hortelã.

As cores nas minhas saias de patchwork.
O vento jogando meu cabelo pra frente do meu rosto e o som da minha própria risada quando eu estou feliz.
O frio na barriga de não saber o que vai ser daqui uma semana.
Essa certeza de que a vida é uma viagem muito louca.
A expressão de espanto no rosto de um machista quando eu respondo a uma ofensa.

A sensação de que eu sou forte o suficiente pra peitar o mundo.
Aquele abraço que é como voltar pra casa.
O mar.

O cheiro do mar.
Incenso.

Chiclete de canela.
Bala de canela.
Batom vermelho.
Música cigana.

Declarações de amor inesperadas.
Liberdade.
Cheiro de livro novo.
Cheiro de livro velho.
Cheiro de livro.


Eu.

(Taboão da Serra)

A grama do meu jardim.

Eu sempre enchi a boca pra falar: "não gosto de pelos", "é sujo", "é nojento" e "é feio, em homem e em mulher". Mas eu realmente acreditava nisso?
Veja bem, eu fui treinada. Aos doze anos, me ensinaram que bonito mesmo é corpo sem pelo.
Que eu precisava tirar todos os eles. Que meu corpo deveria ser infantilizado - corpos de meninas não tem pelos.
É claro que ninguém me disse que não diziam isso pros meninos também.
Então, aos vinte anos, eu realmente achava que não gostava de pelos, que eram sujos.
Me ensinaram. Que pelo é coisa de homem. Que pelo, em corpo de mulher, é anti-higiênico.

Há algumas semanas, tive um insight: queria conhecer a Bárbara. Não a Bárbara-mulher-que-usa-saias-e-vestidos-e-gosta-de-cor-de-rosa. Queria olhar bem na cara da Bárbara-ser-humano, a Bárbara-indivíduo.

Já tinha tentado uma vez e desistido. O julgamento, inclusive dentro de casa, foi pesado. Mas jurei pra mim que dessa vez eu iria até o fim.
Há algumas semanas, eu não deixo pinças, ceras, navalhas e giletes se aproximarem do meu corpo. Está sendo absolutamente libertador.

E é um desafio. Todo dia é um desafio.
Deixá-los crescer foi o menor dos problemas. A minha maior tarefa foi aprender a gostar deles, a ver beleza.

Todo dia é um gritar pra sociedade que eu existo como ser pensante, como ser de opinião.
Gostar dos meus pelos é uma afronta ao heteropatriarcado. É uma coisa que eu exercito todos os dias: eu acordo e me observo e me obrigo a ver beleza em mim do jeito que eu (e)s(t)ou - me faço olhar pro meu corpo todos os dias e dizer: "você é linda".
Então, é como se eu botasse o dedo na cara do machismo e dissesse: "não engulo mais essa sua cagação de regra pra cima desse corpo que é só meu."
É um ato político. Todo dia na minha vida é um ato político.

Corpo de menina não tem pelos. Corpo de mulher, sim.

Descobri a quantidade de tempo e de dinheiro que eu gastava com isso.
Descobri que sou bonita de qualquer forma.
Descobri que a presença deles não interfere de forma alguma na minha vida sexual. (Aliás, descobri que se alguém deixa de transar comigo por causa deles não estou perdendo nada.)

Eu posso olhar no espelho e sorrir. Eu tenho 1,61 m, peso 68 kg e tenho pelos pelo corpo inteiro, porque pessoas tem pelos. TODAS as pessoas tem pelos.

Hoje, se eu decidir me depilar, posso dizer que foi porque eu realmente quis. Porque eu cansei dos pelos. Porque eu descobri que acho feio.
Mas um "porque eu" de verdade. E não um "porque a sociedade" disfarçado de minha opinião.

(Taboão da Serra)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Contar o amor. Florear.

Acontece que eu não sou boa em escrever histórias de amor.
Eu queria muito conseguir, mas sempre que tento meter meus sentimentos dentro desse padrão eles vazam pelas beiradas e escorrem pelo chão, mancham tudo em volta e por um segundo eu penso que eu sou tão estranha por não sentir da forma como todos são condicionados.

Nasci assim, pássaro solto.

Adoro pousar. Adoro ficar.
Mas adoro ser livre pra partir.
E pra voltar também - pra ir embora de uma vez por todas, só pra ser acolhida de novo daqui a pouco.

Tudo aqui é tão extremo, alegria e tristeza, que bota medo nos incautos.

Sinto muito se não sei ser doce o tempo inteiro - ou talvez eu não sinta.
A vida me fez como café: às vezes amarga e forte, às vezes doce e fraca: aguada.


A história de amor que ela me pediu não vai sair.
Escrevi três parágrafos, mas como descrever sentimentos tão meus como fossem de outrem?
Como contar que o tempo parou quando olhei praqueles olhos escuros e profundos? Que me viciei neles durante os meses seguintes?
Não sei.
Só sei que aquela história de amor que ela me pediu não vai sair.
Não vai sair de mim pro papel. Não vai sair de nós pra vida.

Acho que vai virar poesia. Virou.

(Taboão da Serra)

domingo, 5 de outubro de 2014

Divagações.

Engraçado como uma coisa leva à outra.
E de repente você está fazendo uma viagem pelas memórias.

Essa caneca de chá de hortelã fumegante, sem açúcar, me lembra o cheiro de baunilha e de shampoo novo no cabelo de uma das minhas companheiras.
O cobertor que protege meus pés frios me lembra a minha avó e sua voz desafinada cantando antigas canções em uma tarde gelada. E eu brincando de boneca.
A reeleição do governador me deixa arrepiada. Posso ouvir o barulho do choque avançando. Os gritos dos companheiros. E de ter soltado, sem notar, o braço de uma delas na confusão.
E lembrar a confusão e a correria e os gritos e o cheiro do gás me estampa um sorriso enorme na cara por saber a nossa força.
E saber a nossa força me faz pensar pensar nos sete companheiros que nós precisamos (e vamos!) trazer de volta. E nos que já voltaram pra nós, que já voltaram pra casa.
Tudo isso é o que me faz.
E tudo isso me faz querer continuar amanhã. Dar a cara a tapa sabendo que vai doer. Mas que depois de doer e de chorar, eu vou seguir.

Sei lá, só estou divagando. Um beijo procês.

(Taboão da Serra)

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Da laranjeira.

Oi, amor.

Já faz algum tempo que não te dedico as minhas linhas que nem sei por onde começar. Pensei que não faria isso nunca mais.

Não vai ser um texto poético. Não estou me preocupando em embelezá-lo.

É que, amor, aconteceu uma coisa e eu queria te contar: eu senti uma necessidade extrema de escrever para outra pessoa.
Mas como eu poderia dedicar minhas palavras-sentimentos a outra se não me deixei despedir de ti?
Não deu.

Preciso falar sobre minha impossibilidade de ouvir Cícero sem lembrar de uma manhã em que você pediu que eu não me mexesse porque a luz que vinha do corredor me deixava tão bonita. Você disse que podia morrer ali.
Preciso falar que, quando você me deixou, eu senti uma solidão tão grande que engoliu tudo à minha volta e que todas as noites quando eu saía do trabalho sentia vontade de chorar porque queria voltar pra casa e não pra São Bernardo do Campo, que foi onde me escondi pra me reconstruir. E sobre como esse esconderijo, essa solidão, começou a me consumir lentamente a ponto de me deixar prostrada na cama sentindo que todos os dias eram domingos sem planos. Sobre como isso me fez mal.
Preciso te contar como minha irmã me salvou, me botou de volta dentro da casa dos meus pais e me obrigou a encarar a realidade: vinte e um anos, uma profissão que não era a que eu queria e nenhum objetivo a ser alcançado.

Sei que você não acredita, mas meus guias me deram uma lição no último final de semana. Na noite de sexta-feira, quando cheguei do terreiro, comecei a passar muito mal. Doía tudo e eu vomitei a noite inteira. Sábado, meu corpo estava gritando e eu tive febre.
Então, mais uma vez, eles me reergueram. Às vezes, a gente precisa mesmo é de um chacoalhão pra acordar pra vida.

No domingo, acordei vazia de você, mas cheia de mim. Com um amor imenso pra dar e palavras na ponta da língua para dedicar a outras pessoas.

Eu não vou te esquecer. Você me deu os dois meses mais loucos da minha vida. Os mais intensos, os que mais me tiraram de mim. Eu respirei você e meu sangue, eu tenho certeza, era o mesmo que corria nas suas veias.
Eu sei que parece que não, que eu sou tão difícil de me entregar e demonstrar sentimentos quando não estão escritos que fica difícil acreditar em mim.
Mas durante esses dois meses eu fui absolutamente sua, sem nenhuma vergonha de dizê-lo.
Sinto muito por não conseguir ser desinibida como você esperava que eu fosse.

No sábado, pela primeira vez, olhei pra uma foto de nós duas sem sentir dor.
Abri todos os arquivos de vídeo em que você aparecia, inclusive aquele da primeira vez em que saí com as crianças, sem sentir vontade de me afundar.
Senti um calorzinho de saudade. Fiquei absurdamente feliz por ter dividido com vocês aqueles momentos.

Lembro os nossos planos. A nossa casinha no mato, mas não tão longe da cidade. Os filhos que teríamos em alguns anos.
Você foi minha felicidade e é o passado mais bonito que eu jamais poderia sonhar ter.

Amor, eu sempre te chamarei assim. Nossos caminhos estão entrelaçados demais para ser diferente.
E mesmo que não nos vejamos mais, toda a vez que eu ouvir "Vagalumes Cegos" lembrarei que você está comigo.

As minhas próximas palavras não serão suas. Talvez eu nunca mais as dedique a você.
Mas preciso que você saiba e que, por favor, não se esqueça: eu também podia morrer ali.


Com todo o amor e desapego do mundo,

                                                                  Laranjeira.

(Taboão da Serra)

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

S o r o r i d a d e.

Esse texto é um agradecimento.
É dedicado a uma pessoa em especial, mas pode ser estendido a quem se sentir tocado por ele.



Obrigada, companheira, por me fazer confrontar assim, no cru, esse processo de desconstrução a que decidimos nos submeter em busca de um mundo mais livre.
Obrigada pela sinceridade nas suas palavras, obrigada por não esconder que sentiu ciúme de mim, que talvez tenha me odiado por alguns segundos, e que isso te causou sofrimento.

Pensei que nós nunca tocaríamos nesse assunto e sentia, ao mesmo tempo, que nunca nos pertenceríamos verdadeiramente como irmãs, como companheiras nessa luta, se não tocássemos nessa ferida - então, muito obrigada por tê-lo feito. Eu talvez nunca tivesse tido a coragem.

É fato que o sentimento de competição está arraigado em nosso psicológico. O sentimento de posse está ali, latente.
O ciúme que você sentiu é normal. E só agora eu consigo imaginar como pode ter sido absolutamente devastador para você. Como superá-lo pode ter sido tão dolorido.

Irmã, você me contou o momento exato em que me amou, apesar daquela pedra no nosso caminho:
Você me abraçou, naquela quadra cheia de gente bebendo cerveja.
Preciso que saiba como eu me senti livre! Como eu me senti sua! Como fui, naquele momento, completamente igual a você!
Minutos antes, eu te disse, você estava tão na defensiva comigo que eu estava entregando os pontos. Pensava "Ela nunca será minha companheira!", sem nem desconfiar que já o éramos.

Obrigada, companheira, por ter me puxado para aquele aperto libertador.

Obrigada por ser minha irmã.

Obrigada por ter superado comigo esses anúncios e ensinamentos machistas que nos bombardeiam o tempo inteiro: nós não somos inimigas. A vida não é competição.

Os nossos problemas, os nossos medos, são tão iguais. As lágrimas que você chora todos os dias são tão parecidas com as que molham meu travesseiro todas as noites!
Me vejo tanto nas suas palavras.
Eu preciso que você saiba que eu quero te ajudar. Eu estou aqui para te ajudar.

E preciso também que você me ajude. Me ajude a enfrentar essa vida tão dura, assim como me ajudou a ver que aquele abraço nos libertou ao mesmo tempo.

Companheira, obrigada por ontem. E obrigada por todas as experiências que nos trouxeram até aqui, pelos nossos machucados e pela superação deles.

Saiba que você é meu espelho. Que quando eu olho pra você, eu enxergo a mim.
Que as suas feridas também me doem e que podemos tratá-las juntas.
Que, nessa luta contra as opressões do mundo, estou segurando a sua mão.

Companheira, irmã: obrigada! Obrigada por se permitir ser minha. Obrigada por me permitir ser sua.
Obrigada por sermos, justamente por isso, absolutamente livres.

(Taboão da Serra)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Casual.

Tudo embaçado.
Lembro você mordendo meu ombro, lembro de gemer no seu ouvido.
É tarde e ninguém nos ouve.
Sinto seu corpo sobre o meu, sua mão pressionando levemente meu pescoço.
Ah, os seus olhos semicerrados!
É tarde.
Você se despede às pressas,
dá um sorriso e vai embora sem pensar no amanhã.
Vai e me deixa vazia de todas as mágoas que eu cultivava antes de você chegar.
Não sei para onde foi nem se vai voltar um dia,
mas que diferença faz?
Eu voltei.



(São Bernardo do Campo, 13 de abril de 2014)

O machismo etecetera e tal.

Levei exatos 20 anos, 11 meses e 8 dias pra tomar coragem de escrever e isso se deu, que ironia!, na véspera do “dia internacional da mulher”.
Levei muito tempo para perceber que, mais que minha vontade, é minha obrigação.

É uma obrigação porque eu não posso mais ser violada, nem eu nem tantas outras mulheres.
É uma obrigação porque a sociedade me estupra desde que o médico disse que eu era 
uma menina.

Eu sou violada desde o útero da minha mãe, quando os conhecidos me compravam coisas cor-de-rosa. Eu sou violada desde a pré-escola, quando me ensinaram que azul não é cor de mulher. Que menina brinca de boneca e VAI ser mamãe e menino brinca de carrinho, joga futebol e bolinha de gude. Eu fui violada quando me deram de presente um joguinho de panelas (Cor-de-rosa de novo ou, no máximo, lilás!).
Cresci sendo violada, porque me ensinaram que a Barbie é mulher do Ken e não existe outra possibilidade de amor dentro de tanta vida: Amor é coisa fixa e congelada, amor é coisa pronta que a sociedade te impõe, então sufoca esses sentimentos e impulsos, mulher, e vai lavar a louça.

Quando você é mulher, dois amores (ou mais) não podem coexistir.
Lésbica não existe, é só charminho para chamar atenção dos homens.
O machismo é tão opressor que homem não pode ser gay, já que gay é “homem-fêmea”, “bonequinha”, “afeminado”. Um homem que se preze não se rebaixa à situação de mulher, então, ei, você aí: arrume uma fêmea, tenha três filhos e seja infeliz – de preferência, calado.

Eu fui violada no meu primeiro emprego quando fui de vestido e tive que ouvir piadinhas o dia inteiro sobre a peça. Vestido de lã, mangas nos punhos – o que não faz a menor diferença. Se eu estivesse de calças, elas não cessariam porque não eram sobre o vestido, as piadas eram sobre mim. De qualquer forma, nunca mais o usei naquele lugar.
Eu, e tantas mulheres, fomos (e somos!) violadas pela sociedade quando nos ensinaram que mulher não tem amiga: a vida é competição – competição pelo melhor sapato, pela melhor bolsa, pelo melhor macho.

A mídia nos viola todos os dias quando nos grita que estamos muito gordas (ou magras demais), muito vestidas (ou despidas demais), sem vaidade (ou vaidosas demais). Quando nos dão um milhão de dicas de como satisfazer o nosso homem na cama, mas não escrevem uma linha sobre a possibilidade de sermos felizes e completas sem “o príncipe encantado”. A história do príncipe encantado também é uma violação.

Mas mesmo vivendo isso a vida inteira, foi ontem que eu percebi o lixo em que a sociedade está inserida (ou que ela é?). Por causa de ontem eu decidi botar tudo isso no papel (e agora na tela).
Porque é chocante perceber que nem no trabalho, uniformizada, (representando a empresa, como muitos gostam de colocar), eu sou respeitada. Porque, apesar daquele símbolo, eu sou mulher e mulher é sexo, mulher está à disposição.

O fato é que eu fui, com uma colega, repor uma escada rolante que tinha desligado e ajudar a descer uma criança numa cadeira de rodas. Minha colega se afastou de mim por dois minutos, talvez nem isso, e foi o suficiente para que dois homens que subiam a escada rolante ao lado se achassem no direito de mexer comigo. Porque eu sou mulher, estava sozinha e tinha batom nos lábios. Então eles tinham o direito de falar comigo e se referir a mim como “a gostosinha do metrô”. Eu estava ali, então estava pedindo, não é?

Não foi piadinha. Não foi elogio.

Foi opressão descarada, machismo cru.

Foi quase como um soco no estômago. Você está ali trabalhando. Nunca está esperando ouvir esse tipo de coisa. Meu coração acelerou e eu não conseguia parar de tremer.
Doeu porque eu vi: vi claramente que o mesmo cara que me chamou de gostosinha, vai oferecer rosas e bombons amanhã, desejando parabéns num dia para oprimir, sem culpa, nos outros 364. Continuo vendo: vejo que esse cara não é um só. Que, ao mesmo tempo em que ele me ofendia, outros caras (e mulheres) ofendiam outras funcionárias dos metrôs, das lojas de shoppings, das empresas de limpeza, das padarias. Ofendiam mulheres que andavam na rua, indo e voltando do trabalho e buscando os filhos na escola. Em São Paulo e em Ribeirópolis. No Brasil e no resto do mundo.

Pois é, o machismo me sacaneou outra vez ontem. E vai me sacanear hoje de novo, do mesmo jeito que me sacaneou durante os últimos 20 anos. Ontem foi só mais uma vez que o machismo se esfregou na minha cara... Mas é bom ele ficar esperto, porque dessa vez ele me pegou de olhos abertos. 

E eu não vou mais fechar.


(São Bernardo do Campo. Data de 07 de março de 2014 e é uma singela homenagem a hipocrisia.)

Vovó: sobre dona Adélia, sobre mim.

Tô engolindo tudo, empurrando com café quente goela abaixo. A dor desce queimando.
Mas eu sei que preciso digerir tudo isso que aconteceu. E sei que não vai ser fácil, mas não posso voltar atrás.

É fato que ela foi embora num domingo de fevereiro. À tarde. Ainda tinha sol, mas estava tudo escuro. Você, que lê, entende?
Comecei 2014 sentada ao lado da cama, segurando a mãozinha calejada dela, pedindo a Deus que ela ficasse pra sempre, como prometeu que ficaria. Comecei o ano sentada ao lado da cama, segurando a mão dela, como ela fez comigo tantas vezes nos 20 anos que passamos juntas.

A verdade é que eu mudei muito daquele dia pra cá. Vi minha melhor amiga partir aos poucos e vi que ninguém ao redor podia mudar o que estava acontecendo. Isso endurece a gente.
Lidei com a perda dia após dia durante aqueles quase dois meses, mas me recusei a senti-la.
Também não posso dizer que senti no momento derradeiro. Não me deixei sentir talvez por não querer acreditar. Sempre me recusei a sentir muitas coisas - "Tá tudo bem!", mesmo quando não estava.

Mas eu tô me desconstruindo. Tô pegando cada pedaço mal resolvido de vida e dissecando. Tô sentindo cada perda - de oportunidades, de pessoas e de mim mesma.

Tô quieta, me deixe estar. Porque pra conquistar a dor eu preciso de silêncio.
Hoje dói, principalmente, porque ela não está. Estou sentindo essa falta em cada pedaço de mim. Porque, se ela estivesse, eu poderia deitar a cabeça no seu colo enquanto desfazia o emaranhado de sentimentos que trago cá dentro.
Mas ela foi. Era um domingo. Tinha sol, mas estava frio - dá pra entender?

Hoje é segunda-feira. Também faz sol. E eu sinto imensamente a falta dela.

Não acho que sofro mais que os que sentem fome, ou que os que sentem frio, e não ouso dizer que entendo a angústia das crianças num abrigo esperando uma família que as queira. Não me coloco como vítima da vida enquanto palestinos são bombardeados em Gaza e mulheres morrem em decorrência de abortos clandestinos.

Eu sei da miséria no mundo.

Mas hoje essa é a minha dor e sinto que ninguém pode diminuí-la - a ninguém dou esse direito. De qualquer forma, tenho consciência de que não posso tratar das feridas dos outros se não conseguir lidar com as minhas próprias. Tô enfiando o dedo nesse machucado, tô tirando todos os vermes que estavam se aproveitando dessa carne maltratada - higienizando, colocando ataduras limpas.

Tô impaciente, tô chata e não espero que alguém compreenda.

Minha heroína se foi numa tarde de domingo em fevereiro de 2014 e agora que estou digerindo esse fato posso tentar ser a heroína de outras pessoas. Posso ser a heroína da minha própria vida - como ela, junto dos meus pais, me criou pra ser.


(São Bernardo do Campo, 21 de julho de 2014 - uma segunda-feira ensolarada em que ventava aqui dentro.)

Resposta.

Não tem jeito: deixa as palavras saírem uma vez e elas não aceitam mais viver dentro de você. Elas se embolam na sua cabeça, gritam por dentro de ti e quase te levam à loucura e aí, não importa se sua mão direita está imobilizada e você tem prova no dia seguinte: você só tem paz quando as deixa escapar pela mão esquerda para aparecerem logo em seguida na tela do computador (mesmo que isso leve o dobro do tempo que levaria se a mão direita estivesse boa).
Eu só queria pedir decência. Não cometa o erro de outrora – não me prometa o que não pode cumprir.
As feridas todas estão latejando. Tô trocando de pele, tô trocando de sonhos, refazendo meus planos e cuidando do essencial. Então, não interrompa. Deixa o tempo passar, que ainda tem muito de você em mim e não tenho vergonha de dizê-lo. Deixa estar, que ainda estou voltando pra casa - não interrompa.
Eu só queria pedir: não faz de mim poema, porque sei que posso fazer isso sem sua ajuda – posso fazer sozinha. Eu nunca soube escrever verso, sinto muito!, mas minha prosa também tem poesia.


(São Bernardo do Campo, 22 de julho de 2014)

Da menina.

É que ela é uma menina e está ferida.
A ferida está dentro e ninguém vê - ferida que, por não ser vista, não é considerada: se não sangra, então não existe.
A menina, tão colo dela mesma, está cansada. Cansada dos lenços de papel, cansada das lágrimas no final do dia, cansada da solidão de estar sozinha não-estando.
Ela continua. Tropeça, cai, levanta. E anda: um passo e depois o outro.
O sol brilha, mas a cega e ela vai tateando: devagar, incerta.
Ela segue.


(Taboão da Serra, 04 de julho de 2014)

Do meu primeiro dia depois de você.

Olha, amor, nem todas as minhas palavras são suas, mas as próximas são. E são sinceras, sim. São verdadeiras, são concretas porque o que eu sinto não flutua e talvez eu não seja tão maleável quanto tu pensas. 
É que eu sempre vou me adaptar, sempre estarei à procura de um jeito novo de curar a ferida - é que lá no fundo eu sei que tudo vai ficar bem, que tudo já está bem.
É que amei ontem, amo hoje e é muito provável que continue amando amanhã. Só que mais leve. Só que mais solta.
A verdade é que eu não preciso de muito pra seguir. Uma caneca de café agora há pouco me acordou (pra vida), me avisou que é um novo dia e que meu mundo ainda tá aqui: minhas velas, minhas saias coloridas no armário, meus livros - tudo tão impregnado de mim e vazio de você que dói, dói por um instante ou dois, até eu lembrar que não dá pra fugir de quem se é. Eu queria ser Laura (ou Ana, ou Marcela), mas não deu. Tem Bárbara demais aqui. Eu posso ser pequena demais pro seu mundo, mas caibo certinho no que escolhi pra mim.

(São Paulo, 18 de julho de 2014)

É.

É que às vezes a gente se apega fácil, se doa fácil. É que às vezes as pessoas não percebem ou não querem perceber.
A gente vai ficando pelo caminho, pedacinhos de nós semeados nas pessoas - pedacinhos dos outros semeados em nós. E é bom de dar febre, não ser você-sozinho é bom que dói.
Ruim é quando pegam de volta o pedaço de si que te deram e fica o vazio.
É quando as palavras não dizem mais nada e decide-se não falar. É quando o abraço não é bálsamo e não se abraça pra não deixar a distância visível, palpável - não tem nenhum sinal, mas nós conseguimos captar o recado.

Tá frio lá fora, tá frio cá dentro. O vestido no armário é tão bonito que faz pena não usar.
O sorriso no espelho era pra ser tão genuíno. É.



(Taboão da Serra. Data de 11 de julho de 2014: revirando e revivendo meus escritos.)

Carta a um Ex-amor.

    Eu descobri que não te amo. Mas até ontem podia jurar que te amava.
    E sentia que cada célula do meu corpo vibrava só de ouvir teu nome.
    Evitava falar sobre nós duas. Evitava pensar em nós duas. Morria de medo de que alguém percebesse esse amor tão escondido, mas tão latente.
    Você sumiu da minha vida há muito tempo e levou tudo com você. Chorei por uma semana, depois jurei que nunca mais derramaria uma lágrima por sua causa... Não sei se você se lembra, mas eu sou boa nisso de promessas. Costumo cumpri-las, porque não suporto a ideia de que minha palavra foi dada em vão. 
    Quando sequei tudo o que aquela tempestade molhou, prometi que seria outra. E, por um tempo, realmente fui.
    Só que você voltou. Voltou bagunçando tudo, colocando o teto de ponta-cabeça, arrastando tudo com esse furacão que você é. E eu quase, mas muito quase, me entreguei a essa doce loucura que é estar contigo. Mas algo me impediu e não foram seus defeitos nem todas aquelas lágrimas que eu derramei.
    O problema (problema?) é que eu me olhei no espelho. Vi minha boca pequena, meus cabelos agora curtos e claros, meus olhos ligeiramente rasgados e esse sorriso meio de lado que só apareceu quando eu me reconstruí depois de você. Reparei nos cinco quilos que ganhei e também nas pequenas marcas de expressão que já começaram a surgir no meu rosto apesar da pouca idade. Observei atentamente a altivez do meu queixo, o desenho do meu nariz, minhas orelhas um pouco pontudas.
    Coloquei um vestido roxo decotado e vi que, sim, eu sou sensual e não importa o que digam as revistas. Não importa o que disse você há pouco mais de um ano, quando reapareceu por um segundo para tentar quebrar meu coração novamente e sumir logo em seguida.
    Eu olhei para os livros em minha mesa, tão diferentes daqueles que eu lia na sua época. Olhei para os CDs na prateleira, todos com músicas que marcaram alguma parte da minha vida. Passei os olhos ao redor e vi meu quarto pequeno, mas cheio de mim: a cama de solteiro com o urso que ganhei da minha irmã; a imagem de Santa Bárbara na cabeceira; a oração a Santa Sara emoldurada na parede e, pairando acima de tudo, um filtro dos sonhos.
    E aí eu descobri que não te amo. Que você não se encaixa.
    Olha bem para a mulher linda que eu me tornei. Aprende comigo a juntar os pedaços do que já foi e seguir em frente.
    Eu pensava que devia continuar te amando só porque te amei durante muito tempo. Pensava que não conseguiria seguir sem você. Tolice! Bobagem!
    Mais do que descobrir que não te amo: eu descobri que amo a dona da imagem refletida no espelho do meu quarto. Com todas as falhas, com todas as cicatrizes, com cinco quilos a mais e o sorriso meio de lado.
    E tenho certeza de que agora que eu me percebi, estou pronta para ser percebida por outras pessoas.
    Do nosso amor não me arrependo e a você só tenho a agradecer. Pode ser que nos encontremos em outra esquina, quando você descobrir que não me ama. Talvez aí a gente volte a se amar. (Mas quem vai saber?)


                                                                                         Da antes sua


                                                                                                      Bárbara.

(São Paulo. Escrita em 19 de janeiro de 2014.
 Já foi postada aqui, mas apaguei quando da reformulação do blog.)

Ressaca.

Hoje eu acordei triste: cara limpa, olhos inchados, peito vazio.
A tristeza transbordou pelos olhos na noite passada, anos de mágoas enterradas regaram o travesseiro e o som da angústia preencheu o apartamento.
Feridas mal cicatrizadas deram as caras ontem a noite - e jorrou sangue: quente, espesso.
Foi desespero. Foi solidão.
Hoje eu acordei triste. E sozinha.
Mas tendo absoluta certeza de quem eu sou.



(Taboão da Serra. Postado pela primeira vez em 26 de julho de 2014, no Facebook. Postado aqui agora por motivos de: ainda faz sentido.)

Conclusão.

A flor de abandono que você plantou (e cultivou com tanto afinco) brotou, cresceu, floriu - e destruiu minha roseira. Não tem nada que você possa fazer pra reparar: rosa de outro pé é outra vida.
Algo em mim não se adaptou: colhi algumas dessas flores cinzentas que substituíram minhas rosas vistosas e fiz um arranjo, mas elas não ficaram bem na minha sala de estar colorida.
Da próxima vez, vou procurar um lugar seguro pra semear meu jardim - longe dessas flores funestas que ensombrecem meu dia e cospem pétalas-palavras-hostis.
Descobri que não tem jeito: amor a gente só acha onde tem.


(Taboão da Serra)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Quero falar sobre libertação.

A sociedade nos impõe muitas coisas. Nos grita que, aos dezoito, já devemos ter maturidade suficiente para decidir o que faremos pelos próximos 50 anos, mas nos anula, na mesma idade, em diversos outros aspectos – como conhecer a própria identidade de gênero ou orientação sexual.


Aos dezoito, eu escolhi. E eu fracassei.
E agora tá tudo bagunçado, tá tudo dolorido.
Me embalei em sonhos que não eram de todo meus e voltar a mim está sendo custoso. Dói.
Dói porque é como se eu não me conhecesse. Dói porque é como se eu fosse ingrata por ter deixado (ou feito) meus pais investirem tanto em mim pra não devolver a eles uma filha advogada. Dói por me ver exatamente assim: um investimento que traria lucros em longo prazo.
Dói por eu ter consciência de que nós não pertencemos a nós mesmos.
Cheguei à conclusão de que todos somos mais ou menos como uma colônia. E eu sou uma colônia travando a sua guerra de independência contra um país opressor.
Meus pais são o meu país opressor, mas às vezes acredito que eles não têm consciência de que estão oprimindo. (Ou eu prefiro pensar assim – por favor, me deixe sonhar!).

Eu fracassei, mas não me entreguei ao fracasso. Confesso que há dias em que eu não quero sair da cama. Eu acordo e quero chorar, então durmo de novo pra não doer. Pra enganar.
Mas não me entreguei. Tô na luta, vou atrás do meu sonho. Mesmo que meu sonho de ser professora me pague muito menos do que o sonho deles de ter uma filha advogada. Ou que a minha realidade de metroviária.
Porque sonhos, assim, não tem preço. Não deveriam ter.

Conquistar essa terra árida de “mim-mesma” não está sendo fácil. Não está sendo simples.
Conquistar a dor e senti-la inteira, tomar posse de si mesmo – com todas as mágoas, com todas as lembranças, com todas as alegrias – é trabalhoso. É um passo de cada vez. É um dia, depois o outro e o seguinte a gente vê depois.
E parte disso é assumir: eu fracassei perante a sociedade. Por seguir a risca os seus padrões, estou infeliz.
Estou infeliz porque vivi e propaguei muitas ideias tortas dessa cultura maldita durante tanto tempo da minha vida.

Sou fracassada:
Não quero um corpo sarado, muito menos quero ser magra – engula isso, sociedade.
Arrumar um homem que me banque e me considere uma propriedade não é um objetivo da minha vida. Aliás, não quero homem - lésbica que sou. Mas mais que isso (livre de gênero):
 eu não quero algemas, quero amor: acredite, nunca foi um desejo dessa colônia deixar um país opressor para quedar sob o julgo de outro.
Tenho vinte e um anos e não faço ideia do que fazer daqui pra frente. E, se for levar em conta a expectativa de vida no Brasil, ainda tenho uns 58 anos pela frente.


Queria muito cultivar um jardim.
Acho que vou florir.


(Taboão da Serra)