terça-feira, 9 de setembro de 2014

Vovó: sobre dona Adélia, sobre mim.

Tô engolindo tudo, empurrando com café quente goela abaixo. A dor desce queimando.
Mas eu sei que preciso digerir tudo isso que aconteceu. E sei que não vai ser fácil, mas não posso voltar atrás.

É fato que ela foi embora num domingo de fevereiro. À tarde. Ainda tinha sol, mas estava tudo escuro. Você, que lê, entende?
Comecei 2014 sentada ao lado da cama, segurando a mãozinha calejada dela, pedindo a Deus que ela ficasse pra sempre, como prometeu que ficaria. Comecei o ano sentada ao lado da cama, segurando a mão dela, como ela fez comigo tantas vezes nos 20 anos que passamos juntas.

A verdade é que eu mudei muito daquele dia pra cá. Vi minha melhor amiga partir aos poucos e vi que ninguém ao redor podia mudar o que estava acontecendo. Isso endurece a gente.
Lidei com a perda dia após dia durante aqueles quase dois meses, mas me recusei a senti-la.
Também não posso dizer que senti no momento derradeiro. Não me deixei sentir talvez por não querer acreditar. Sempre me recusei a sentir muitas coisas - "Tá tudo bem!", mesmo quando não estava.

Mas eu tô me desconstruindo. Tô pegando cada pedaço mal resolvido de vida e dissecando. Tô sentindo cada perda - de oportunidades, de pessoas e de mim mesma.

Tô quieta, me deixe estar. Porque pra conquistar a dor eu preciso de silêncio.
Hoje dói, principalmente, porque ela não está. Estou sentindo essa falta em cada pedaço de mim. Porque, se ela estivesse, eu poderia deitar a cabeça no seu colo enquanto desfazia o emaranhado de sentimentos que trago cá dentro.
Mas ela foi. Era um domingo. Tinha sol, mas estava frio - dá pra entender?

Hoje é segunda-feira. Também faz sol. E eu sinto imensamente a falta dela.

Não acho que sofro mais que os que sentem fome, ou que os que sentem frio, e não ouso dizer que entendo a angústia das crianças num abrigo esperando uma família que as queira. Não me coloco como vítima da vida enquanto palestinos são bombardeados em Gaza e mulheres morrem em decorrência de abortos clandestinos.

Eu sei da miséria no mundo.

Mas hoje essa é a minha dor e sinto que ninguém pode diminuí-la - a ninguém dou esse direito. De qualquer forma, tenho consciência de que não posso tratar das feridas dos outros se não conseguir lidar com as minhas próprias. Tô enfiando o dedo nesse machucado, tô tirando todos os vermes que estavam se aproveitando dessa carne maltratada - higienizando, colocando ataduras limpas.

Tô impaciente, tô chata e não espero que alguém compreenda.

Minha heroína se foi numa tarde de domingo em fevereiro de 2014 e agora que estou digerindo esse fato posso tentar ser a heroína de outras pessoas. Posso ser a heroína da minha própria vida - como ela, junto dos meus pais, me criou pra ser.


(São Bernardo do Campo, 21 de julho de 2014 - uma segunda-feira ensolarada em que ventava aqui dentro.)

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