Tô engolindo tudo, empurrando com café quente goela abaixo.
A dor desce queimando.
Mas eu sei que preciso digerir tudo isso que aconteceu. E sei que não vai ser fácil, mas não posso voltar atrás.
Mas eu sei que preciso digerir tudo isso que aconteceu. E sei que não vai ser fácil, mas não posso voltar atrás.
É fato que ela foi embora num domingo de fevereiro. À tarde.
Ainda tinha sol, mas estava tudo escuro. Você, que lê, entende?
Comecei 2014 sentada ao lado da cama, segurando a mãozinha calejada dela, pedindo a Deus que ela ficasse pra sempre, como prometeu que ficaria. Comecei o ano sentada ao lado da cama, segurando a mão dela, como ela fez comigo tantas vezes nos 20 anos que passamos juntas.
Comecei 2014 sentada ao lado da cama, segurando a mãozinha calejada dela, pedindo a Deus que ela ficasse pra sempre, como prometeu que ficaria. Comecei o ano sentada ao lado da cama, segurando a mão dela, como ela fez comigo tantas vezes nos 20 anos que passamos juntas.
A verdade é que eu mudei muito daquele dia pra cá. Vi minha
melhor amiga partir aos poucos e vi que ninguém ao redor podia mudar o que
estava acontecendo. Isso endurece a gente.
Lidei com a perda dia após dia durante aqueles quase dois meses, mas me recusei a senti-la.
Também não posso dizer que senti no momento derradeiro. Não me deixei sentir talvez por não querer acreditar. Sempre me recusei a sentir muitas coisas - "Tá tudo bem!", mesmo quando não estava.
Lidei com a perda dia após dia durante aqueles quase dois meses, mas me recusei a senti-la.
Também não posso dizer que senti no momento derradeiro. Não me deixei sentir talvez por não querer acreditar. Sempre me recusei a sentir muitas coisas - "Tá tudo bem!", mesmo quando não estava.
Mas eu tô me desconstruindo. Tô pegando cada pedaço mal
resolvido de vida e dissecando. Tô sentindo cada perda - de oportunidades, de
pessoas e de mim mesma.
Tô quieta, me deixe estar. Porque pra conquistar a dor eu
preciso de silêncio.
Hoje dói, principalmente, porque ela não está. Estou
sentindo essa falta em cada pedaço de mim. Porque, se ela estivesse, eu poderia
deitar a cabeça no seu colo enquanto desfazia o emaranhado de sentimentos que
trago cá dentro.
Mas ela foi. Era um domingo. Tinha sol, mas estava frio - dá
pra entender?
Hoje é segunda-feira. Também faz sol. E eu sinto imensamente
a falta dela.
Não acho que sofro mais que os que sentem fome, ou que os que sentem frio, e não ouso dizer que entendo a angústia das crianças num abrigo esperando uma família que as queira. Não me coloco como vítima da vida enquanto palestinos são bombardeados em Gaza e mulheres morrem em decorrência de abortos clandestinos.
Eu sei da miséria no mundo.
Mas hoje essa é a minha dor e sinto que ninguém pode
diminuí-la - a ninguém dou esse direito. De qualquer forma, tenho consciência
de que não posso tratar das feridas dos outros se não conseguir lidar com as
minhas próprias. Tô enfiando o dedo nesse machucado, tô tirando todos os vermes
que estavam se aproveitando dessa carne maltratada - higienizando, colocando
ataduras limpas.
Tô impaciente, tô chata e não espero que alguém compreenda.
Minha heroína se foi numa tarde de domingo em fevereiro de
2014 e agora que estou digerindo esse fato posso tentar ser a heroína de outras
pessoas. Posso ser a heroína da minha própria vida - como ela, junto dos meus
pais, me criou pra ser.
(São Bernardo do Campo, 21 de julho de 2014 - uma segunda-feira ensolarada em que ventava aqui dentro.)
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