segunda-feira, 9 de abril de 2018

O que a Enfermagem fez por Mim

Eu não me lembro, claro. Só sei que eu nasci prematura e naqueles primeiros dias, doze dias, foi a enfermagem que cuidou de mim para a minha mãe. Para que eu sobrevivesse.
Eu também não lembro, mas quando minha irmã estava pra nascer fiquei doentinha de novo. E, mais uma vez, a enfermagem esteve ali e ajudou a minha mãe, grávida, com meus cuidados básicos. Me ajudaram a sobreviver.
Aos dez anos de idade, mais uma vez eu precisei da enfermagem... E mais uma vez, a enfermagem estava lá. Foram mais dezessete dias de cuidados intensivos e desses eu me lembro: troca de fralda, higiene bucal com bonequinha quando minhas mucosas não aguentavam a escova de dente, passagem de cateter para alimentação, medicações, coletas de exames, presença e toques... A enfermagem esteve ao meu lado, para me ajudar a sobreviver.
Oito anos depois, a gente se cruzou de novo - ela e eu. Tão recente na memória aquela primeira noite na UTI, sozinha. Eu nunca tinha ficado sozinha no hospital. Aquela noite em especial, em que eu sentia tanto medo de morrer, a enfermagem me amparou na pessoa daquela técnica que vinha me ver e segurar a minha mão, a noite inteira me ouvindo chorar, me dizendo que estava ali. O que mais ela poderia fazer? O que mais ela precisaria fazer quando sua simples presença diminuía a minha dor e meu medo? Dessa internação eu lembro de tudo: a insistência pra eu sair da cama e andar pelo corredor ou me sentar na poltrona, os exames de sangue bem cedinho, o respeito pela minha Santa Bárbara em cima do criado mudo, toda aquela gente boa aguentando os meus chiliques.
Um tipo diferente de enfermagem me amparou quando minha mente não dava mais conta de seguir sozinha. O olhar carinhoso da enfermeira da psiquiatria que me recebeu, o tanto que eu chorei, o fato de ela nunca me confundir com a outra Bárbara e nunca me dar dipirona devido ao meu histórico médico, só paracetamol, porque eu não sou alérgica "mas não é bom arriscar, né?". O incentivo para que eu tomasse banho, arrumasse a minha cama, saísse um pouco do quarto, quem sabe um pouco de TV? Eu não entendia, mas estavam cuidando de mim. Quando eu fiquei zonza, bati a cabeça, vomitei e tive que dormir ao lado do postinho na véspera da minha alta, a enfermagem estava de olho em mim. Pra garantir, de novo, que eu sobrevivesse.
E ainda hoje, quando eu preciso me obrigar a sair da cama debaixo de chuva para ir à escola, a enfermagem me salva.
Sou salva por ela todos os dias quando encontro ali um motivo para continuar, quando vejo nela um objetivo a ser atingido, uma meta pra continuar viva.
Eu luto contra a depressão e a ansiedade todos os dias, luto comigo mesma quando me obrigo a pesquisar, a estudar, a me dedicar a cuidar de outras pessoas quando muitas vezes eu não tenho ânimo para cuidar de mim mesma. Não é fácil, mas é a enfermagem me testando e me ajudando a me curar. Mesmo que eu chore, mesmo que eu não entenda.
Essa é a minha primeira semana de enfermagem, a primeira de muitas que eu quero viver. Parabéns a todos vocês que me salvaram, que salvaram tantas outras pessoas e que, mesmo quando não conseguem mais, ainda dão o seu melhor. Vocês me doam vida a cada segundo.
A enfermagem salvou a minha vida muitas vezes.
Hoje eu sou a enfermagem. Prometo retribuir!

(12 de maio de 2017, no Facebook)

Amor ao que se faz

Não tenho vergonha de dizer que levei 5 anos a mais que o tempo preconizado pela sociedade para descobrir qual profissão eu gostaria de seguir.
Confesso que eu nunca soube o que queria fazer da vida, eu nunca tive paixão por alguma ocupação... Queria fazer faculdade de Direito, mas nunca quis ser advogada. Queria fazer faculdade de Letras, mas não cabia no academicismo uspiano. Eu queria o que então?
Tentei aos 18, como era estabelecido, depois abandonei tudo e tentei com 22 outra coisa diferente... Já tinha aceitado que não encontraria um trabalho que eu amasse e, no futuro, teria que me adaptar a um trabalho que pagasse as contas e garantisse comida na mesa até o final do mês, e tudo bem, porque é assim com todo mundo, né?
Até que a enfermagem apareceu pra mim. Ela me chamou e eu, finalmente, fui. E mesmo que eu vá terminar os estudos com sete anos de atraso (porque ainda quero me graduar), tenho orgulho da minha trajetória até aqui e posso dizer que realmente encontrei o meu caminho.
Apesar do cansaço. Apesar das muitas vontades de desistir pelo caminho. Apesar das noites em que eu durmo 3 ou 4 horas e das noites em que eu emendo um turno no outro. Apesar do desespero que bate por ser velha demais para estar numa sala de aula.
Dois anos atrás eu não queria estar viva, porque o mundo é ruim demais. Hoje eu tenho certeza de que devo estar, para fazer com que ele seja um lugar um pouquinho melhor.


(19 de dezembro de 2017, no Facebook)

Do dia 23

Eu tento buscar desesperadamente lembranças que estão o tempo inteiro tentando fugir.
No primeiro dia, nós lembramos de tudo, mas as horas se acumulam e quando a gente vê já se foram um, dois, três anos. As memórias precisam de mais concentração pra chegar. Qual era a cor dos seus olhos? Eu já não lembro com certeza... Só lembro que quando me olhavam transbordavam amor e não é exagero... Eu tive e tenho tantas dúvidas na minha vida, mas o amor da minha avó sempre esteve ali como uma rocha. Firme. Certo.
Às vezes, o cheiro dela preenche o ambiente e eu fico em dúvida se estou louca de vez ou se ela está comigo de verdade - o seu cheiro de livro, de igreja, cheiro de vó.
Hoje eu não tenho mais ninguém para discutir os romances da Agatha Christie que comprei pra nós duas, uma coleção inteira de mistérios que a gente devorava. Eles ficam me olhando da estante sempre que vou na casa dos meus pais, me lembrando de como a felicidade era fácil quando eu era criança e podia me esconder atrás da minha avó quando entrava algum vizinho no elevador. "Parece até bicho do mato!"
Dona Adélia me ensinou tanta coisa na vida... Eu bordava enquanto ela fazia crochê, eu roubava suas revistas de palavras cruzadas, eu fazia dedicatórias em livros que ela tinha comprado pra ela mesma só pra poder escrever que a amava. Quando as pessoas vão embora, a gente percebe que nunca disse o suficiente.
23 de fevereiro será sempre dela, porque foi quando eu aprendi a última lição que ela poderia me ensinar: a vida continua mesmo quando as coisas não acontecem como a gente gostaria.
Seguimos juntas, cada uma de um lado, unidas pelas bençãos de Nossa Senhora Aparecida. E, quando enfim nos encontrarmos, vai ser lindo... Só não vai ser mais lindo do que tudo que vivemos juntas enquanto nos foi possível.


(23 de fevereiro de 2017, no Facebook)

02

Ontem fez dois anos que o amor foi embora e eu ainda estou aprendendo a lidar com essa ausência.
O tempo fez a sua mágica e passou rápido... Há dias em que não dói nada e dias em que as lembranças são insuportáveis e a solidão é quase palpável.
Se ela está me observando em algum lugar não sei dizer se sente vergonha ou orgulho de como estou passados esses dois anos, só sei que tenho tentado melhorar e seguir porque não posso me curvar ao mundo que ela própria venceu. Sua experiência e seus ensinamentos são minha armadura e minha espada.
(E talvez o amor não tenha ido realmente embora, tenha apenas mudado de forma e endereço.)

(24 de fevereiro de 2016, no Facebook)



Desabafo

Esse é um texto sem pretensões literárias, é puramente um desabafo.
Há alguns meses eu escrevi um texto sobre viver com depressão.
Daquele tempo pra cá algumas coisas mudaram (a base de muito suor e lágrimas, diga-se de passagem).
Encarar as doenças psicológicas realmente como DOENÇAS (e não como frescura, como "deprê") foi o primeiro passo para resolver os problemas que elas causaram e lidar com os que elas ainda causam. Perder o preconceito com o uso de antidepressivos foi primordial. Entender a terapia como um tratamento que vai me trazer melhoras a longo prazo... Tudo isso foi um aprendizado árduo.
Em um ano muitas pessoas se afastaram de mim ou eu me afastei delas... Eu simplesmente não queria ser um fardo. Ninguém realmente quer saber quando foi a última vez em que você teve uma crise de choro "sem motivo" e eu entendo: realmente, ninguém precisa lidar com nossas dificuldades.
Mas muita gente boa se aproximou de mim também. Estar internada com outras pessoas "loucas" como eu me abriu para um mundo completamente novo. E completamente lindo.
É tão bonito se aceitar. É tão bonito aceitar seus tropeços, seus defeitos, seus medos. Mas não foi fácil, não É fácil (e aqui eu mando um beijo pra todas as pessoas que conheci nessa batalha: VOCÊS SÃO INCRÍVEIS!).
Eu sou como um bebê: às vezes tenho medo de estar sozinha no escuro, às vezes me assusto fácil, às vezes não quero sair da cama. Mas como um bebê que vai assimilando o mundo, eu estou aprendendo a estar no meio de gente de novo, a falar a mesma língua... Recuperando o hábito da leitura, sentindo prazer ao ouvir uma música de que eu gosto.
Quando você se propõe a fazer análise você nunca imagina que vai cavar tão fundo dentro de si que vai encontrar feridas que nem imaginava que existiam! Trabalhar com o público é difícil, mas eu não sabia que achava tão difícil assim. Começar uma vida a duas é difícil. Lidar com a família é difícil.
Eu sempre guardei tudo pra mim. 22 anos de mágoas acumuladas, uma hora ia ter que explodir... Eu nunca soube me abrir, então hoje não sou delicada ao falar.
Eu vejo as coisas erradas e quero resolver na hora, porque não quero guardar mais nada pra mim: a mente e o corpo botam pra fora uma hora ou outra e não é de um jeito delicado.
Não tenho mais vergonha dos meus problemas, não quero a pena de ninguém (mas às vezes ainda preciso da compreensão), fazer análise dói e faz chorar mas ajuda a cicatrizar algumas coisas dentro da gente e tá tudo bem precisar de um colo de vez em quando.

(11 de março de 2016, no Facebook)

Mais um dia normal em SP

Vocês pensam antes de falar?
Estou há alguns dias avaliando se valia a pena escrever sobre isso.
Não é segredo pra ninguém que eu sofro de depressão. Eu voltei a trabalhar há alguns meses, depois de aproximadamente um ano em crise (tendo, inclusive, estado internada em uma clínica psiquiátrica por 20 dias).
Existem dias insuportáveis. São os dias em que as horas não passam ou passam rápido demais, dias em que eu estou irritável, dias em que eu quero ficar sozinha e dias em que não aguento a minha própria presença. Nesses dias, a sensação de ser um fardo é constante.
Nesses dias, me levantar, escovar os dentes, comer e sair para trabalhar são violências que eu cometo contra mim mesma. Dói. E eu chego em casa esgotada. Não é cansaço, o que me falta é energia vital. Eu posso dormir 12h, 15h e a bateria não vai recarregar. Então eu olho pra louça que precisa ser lavada, pra roupa que precisava ser estendida no varal, pro cachorro que precisa tomar banho... Tenho vontade de chorar, porque eu quero resolver tudo, mas a vida corre em uma velocidade muito mais veloz do que eu. Estou sempre correndo atrás.
Eu sempre achei meio clichê a frase que diz que devemos ser gentis porque não sabemos que batalha os outros estão enfrentando dentro de si.
Vou tomar a liberdade de responder a pergunta que eu fiz no começo: vocês não pensam antes de falar.
Essa semana, uma mulher que não me conhecia me disse: "Você não serve pra nada. Pra que você tá aqui? Não serve pra nada."
Eu estou há dias tentando digerir.
Já tentei inventar muitas desculpas: ela trabalhou o dia inteiro e estava cansada, ela estava com problemas em casa para resolver, ela poderia estar sentindo dor e dor deixa a gente meio ignorante mesmo, às vezes ela nem queria falar isso.
Mas a verdade é que não tem desculpa. A verdade é que eu não quero desculpar porque estou há um ano lutando, dia após dia, para me convencer de que eu sou importante, de que eu sou inteligente, de que sirvo, sim, pra alguma coisa ainda que agora eu não saiba exatamente pra que.
Eu não pude resolver o problema dela porque não sabia como ajudar. Ela provavelmente foi embora se sentindo leve por ter descarregado a frustração dela em uma babaca de uniforme dentro da bilheteria e, com certeza, já me apagou da memória dela. Eu estou há dias tentando reparar as rachaduras que as palavras dela me causaram.
Não estou falando de "mais amor, por favor". Estou falando de respeito e empatia, que são muito mais básicos.
Hoje eu acordei chorando. Agora eu estou chorando.
Mas amanhã vai passar. E, se não passar amanhã, eu ainda tenho depois e depois e depois e depois... Eu sobrevivi a todas minhas crises, cheguei ao final de cada dia por pior que ele fosse.
Se as pessoas não nos respeitam, que, pelo menos, a gente se respeite e se orgulhe das nossas vitórias. Mesmo que sejam pequenas e que tenham sido difíceis de atingir.
Hoje eu não queria, mas consegui sair de casa e vir pro serviço. Então, parabéns pra mim: Bárbara, você está fazendo um ótimo trabalho!

(19 de junho de 2016, no Facebook)

Vida

Tu acorda seis horas da manhã. Corre pra aula, se atrasa um pouquinho mas nada demais. Fazer o que? É a vida!
Ansiedade a milhão.
Tu vai pro trabalho e nem almoça, porque tem pesquisa pra fazer e tem aquela matéria acumulada que tu precisa recuperar. Fazer o que? É a vida!
Antidepressivo nosso de cada dia às 14h.
Tu recebeu uma nota meio bosta na última avaliação no serviço, que te deixou pra baixo, e recebeu o comentário de que é preciso ter mais alheamento e menos empatia com o cliente. Beleza. "Moça, carreguei o cartão na máquina e não saiu recibo nem caiu o crédito". Não tem como eu resolver, a máquina não é da empresa, tem que ligar pra SPTrans - mais alheamento, menos empatia. Botam o dedo na tua cara, gritam com você e ameaçam chamar polícia, televisão, os cara da quebrada pra meter bala em tudo. Tu acha que ninguém tem que passar por essa situação, nenhum dos lados (nem deveria existir dois lados) - mas fazer o que? Comprimido sublingual, bola pra frente. É a vida!
Tu tá cansada. Tu dorme 4h por noite, chegando em casa do trabalho ainda tem roupa pra estender no varal que tu deixou batendo antes de sair, tu nem se lembra da última vez que foi ao cinema e faz tempo que tu não lê um livro pelo simples prazer de ler, teus pés estão doendo e agora tu lembrou que ainda não almoçou, mas já é a hora do jantar. Fazer o que? É a vida!
É vida?


(28 de novembro de 2016, no Facebook)

Lilith, a gata, e sobre como a gente faz a diferença.

Essa foto é do dia em que peguei a Lilith na estação e trouxe pra casa.
Lembro de ter chegado pra começar meu turno e das colegas da manhã terem dito: "tem uma mocinha ali perguntando se você não quer levar ela pra casa". Ela era magrelinha e meio suja, mas tinha os olhos mais expressivos que já vi em um gato. E brincava com qualquer um que chegasse perto... Partiu meu coração ver uma filhotinha tão fofa na rua daquele jeito! Fui pra bilheteria e quando saí ela tinha sumido. Torci pra alguém ter levado ela pra casa... Mas no final do turno, quem está lá? Ela voltou pra mim. Ela estava ali pra mim! Enfiei numa caixa e trouxe embora. É a minha Lili!
Escrevi tudo isso porque ontem eu estava me sentindo inútil, cansada mesmo, fraca... Aí entrei no quarto e vi essa gatinha esparramada na cama... Hoje, 6 meses depois dessa foto, ela tem uma casa em que todo mundo a ama. Ela está gordinha demais, ela adora comer e hoje não falta mais comida pra ela.
Como eu poderia ser inútil se eu mudei o rumo dessa vidinha felina?
A gente é especial sim.


(21 de dezembro de 2016, no Facebook



Ano 04

Eu escrevo para me entender e também para me conectar com as pessoas, porque não sou muito boa com relações em geral. A minha história me faz ter dificuldade de estabelecer vínculos, porque eu fui traída, humilhada e perseguida por alguém em quem eu confiei quando era ainda uma criança.
Eu escrevo para aliviar a dor e o cansaço e, às vezes, porque é a única coisa que me resta.
Mas eu escrevo, principalmente, para me conectar com ela. Que me ensinou o poder da palavra escrita como alívio terapêutico. Que me ensinou o poder da oração como remédio. Que me ensinou o poder do amor como refúgio.
Hoje se completa o quarto ano sem ela e não vou mentir que é fácil, porque não é. O tempo não cura e não ameniza, apenas tira a ausência do centro das atenções. Nos meus piores dias, a única coisa que eu podia fazer era enfiar o rosto no travesseiro e gritar, chorando, implorando que quem quer que controlasse a vida me levasse pra junto dela.
Eu quase morri algumas vezes. E em cada recuperação, ela me dizia que era porque Deus tinha me dado uma missão, que eu continuava viva porque era um instrumento divino na Terra e que eu adoecia porque o Mal tentava me derrubar. Quando entrei em depressão, eu sempre pedia que Deus me tirasse do sofrimento, mas sempre soube que aquilo ia passar porque, qualquer que fosse a minha missão, ainda não tinha sido cumprida.
Mas esse texto não é sobre fé, é sobre amor. O amor que aceita qualquer coisa. O amor de uma avó católica de 80 anos pela neta lésbica, umbandista e levemente disfuncional.
Dona Adélia, que era humana e que tinha defeitos, que errou tanto como todos nós, me ensinou que o amor é continuar amando apesar de não concordar com as decisões de quem se ama. Que o amor é continuar cuidando quando o mundo bater em quem você ama - porque todo mundo vai apanhar da vida algum dia. "O mundo é ruim", ela me disse uma vez. Então por que não sermos a bondade que queremos encontrar nos outros?
Eu queria que ela visse onde estou, quem eu me tornei apesar das minhas dores e por causa delas. Mas ela se foi há quatro anos e uma das últimas coisas que eu soube que ela disse para a enfermagem antes de entrar em cirurgia foi: "as minhas netas são a minha dádiva".
Não, vó... Você foi a nossa, sempre será.


(23 de fevereiro de 2018, no Facebook)



(Re)começos

Quando eu comecei a faculdade de Direito, lá em 2013, eu tinha certeza absoluta do que eu queria e, apesar de não ter tido uma boa integração com ninguém, eu amava aquela faculdade, seu prédio velho e sua biblioteca cheia de leis que eu queria devorar. Eu fiz dois anos de cursinho para estar ali. Quando o que eu identifico como a minha primeira crise depressiva me assolou em junho de 2014 e eu abandonei o curso, eu já tinha reprovado o segundo ano e minha nota mais alta era 5,0.
Quando eu comecei a faculdade de Letras em 2015, eu não fiquei feliz porque eu já não sentia nada. Eu não achei que passaria na USP porque já não acreditava em mim e, quando passei, achei que tinha sido um golpe de sorte e não comemorei. Ao contrário da faculdade de Direito, eu odiava a FFLCH e seus alunos de nariz empinado, todos querendo saber mais que o colega do lado, odiava os circulares lotados, odiava como não me encaixava naqueles grupos estilosos que fumavam no morrinho... Gostava do que estudava, mas o tempo inteiro dentro daquela faculdade era uma tortura. Finalizei o semestre, reprovei em metade das matérias e nunca mais voltei.
Hoje, depois de muitos miligramas de antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos, de todos os "anti" que você se lembrar, me arrependo todos os dias de ter perdido essas oportunidades. Talvez eu estivesse menos louca se tivesse terminado o curso de Direito, ou pelo menos poderia estar louca com mais dinheiro se tivesse continuado. Talvez eu tivesse superado meus problemas iniciais na USP e hoje estivesse super bem encaminhada no mundo acadêmico...
Mas agora, de volta a posição de aluna, com muito menor capacidade de concentração que antes devido aos "anti" que me mantém viva e bem longe da USP e de São Bernardo eu sou muito grata pela oportunidade de recomeçar. E reaprender a fazer regra de três. E de conseguir achar graça na lapiseira combinando com a borracha.
Então eu queria deixar um recadinho pra todo mundo que sofre com esses desequilíbrios neuroquímicos: a gente cai, esfola os joelhos, pensa que vai desistir e às vezes até desiste mesmo, mas se a gente não desistir as coisas melhoram. Às vezes, eu quero jogar tudo longe e não ir pra escola nunca mais. Falto dias seguidos e depois corro pra recuperar a matéria que eu perdi, porque não me permito desistir. Me dei essa obrigação e talvez seja a única obrigação real que eu tenho na vida: ficar viva pra ver as coisas melhorarem.
Tentem não desistir de vocês assim como eu tento não desistir de mim e, quando chegar o fim do dia, sintam orgulho por terem conseguido - mesmo se a única coisa que vocês conseguiram fazer foi abrir os olhos, mesmo se não saíram da cama ou tomaram banho. Se a única coisa que nós conseguirmos fazer for sobreviver, nós já estaremos fazendo o mais importante.
Saibam que vocês são foda. A gente é foda!


(25 de maio de 2017, no Facebook)



Humanizar

Desde que eu fiz o curso de doula, trabalho todos os dias para agir de forma mais empática, resiliente e acolhedora. Eu fiz o curso porque acredito nesses valores. Eu fiz o curso porque vivemos em uma sociedade que nos massacra dia após dia e eu gostaria que, pelo menos ao nascer, todos nós fossemos respeitados.
Eu me afastei do movimento de humanização por perceber que é, sim, um movimento elitista. É, sim, um movimento predominantemente branco, hetero e classe média alta. É fácil ser humanizado no Santa Joana, no São Luiz, pagando 10 mil reais... E aqui na periferia?
Eu concordo que as doulas cobrem pelo seu serviço, nada mais justo. Mas eu me recuso a levantar essa bandeira linda e brilhante enquanto no Hospital Campo Limpo, pertinho aqui de casa, tem mulher com quem nunca ninguém conversou sobre trabalho de parto - que nunca ninguém trabalhou o psicológico dela para encarar a viagem que é o parto normal - pedindo anestesia e ouvindo que "não pediu anestesia quando tava fazendo né?".
Já que eu não trabalho como doula, decidi humanizar em todo lugar que eu puder. Decidi humanizar no mercado, no ponto de ônibus, no meu trabalho. Que todo lugar por que eu passe seja um pouquinho mais acolhedor, que toda pessoa com quem eu converse vá embora se sentindo importante.
Mas tem dia que não dá pra acreditar... Tem dia que a realidade se esfrega bem no nosso nariz e diz "humaniza aqui, sua otária" e aponta pra podridão do mundo e a gente se sente inútil.
Hoje no Metrô eu atendi uma gestante. "Eu tô de 9 meses", ela disse. "É o primeiro. Um menino." Eu pedi o documento dela para preencher nossa ficha de primeiros socorros.
13 anos. Ela tinha 13 anos.
Eu fui com ela ao banheiro e ela não sabia nem colocar um absorvente direito. Ela devia estar brincando de boneca!
Enquanto nós esperávamos a viatura e eu tentava cronometrar as contrações, ela começou a chorar. Apertava as mãozinhas e tentava não resmungar. Eu falei que ela podia chorar e gritar e xingar se quisesse. Brinquei que se não fosse muito forte, ela podia até me bater. Ela riu no meio do choro e o rapaz que estava com ela disse: "você devia ser enfermeira... lá no hospital disseram que se na hora ela gritasse iam largar ela lá sozinha". 13 anos. Negra. Grávida de um abuso.
Vem humanizar aqui no Capão... Vem vocês humanizar aqui porque hoje eu não tô dando conta.


(13 de agosto de 2017, no Facebook)

Lourdes

Hoje, logo cedo, recebi uma notícia para integrar o meu rol de dores atual: o falecimento de uma paciente a quem me apeguei um pouco durante esses dias de estágio.
Nunca esquecerei de quando cortei e lixei as unhas dela, perguntei se estava bom e ela ergueu as mãos, toda vaidosa, sorriu e disse: "está perfeito"... É dela assim que eu quero lembrar.
Acredito que o primeiro paciente que nós perdemos após semanas de cuidado é sempre impactante... Depois do episódio das unhas, passei outros bons e maus momentos ao lado do leito dela. Um dia, quando eu estava pensativa sobre as coisas conturbadas da minha vida pessoal, ela segurou no meu braço e disse "o meu primeiro amor morreu quando eu ainda era bem nova... não tem que ter pressa, viu? eu só fui me casar aos 27 anos" - sem eu nunca ter comentado nada sobre as coisas que aconteciam dentro do meu coração.
O que eu queria dizer com tudo isso é que a gente deve aproveitar cada segundo ao lado de todas as pessoas que, por qualquer motivo, estão nas nossas vidas... A gente nunca sabe onde tem algo pra aprender.
Hoje tem mais essa dor para eu carregar, mas ela traz junto a sensação de dever cumprido que eu espero sentir todas as noites quando me deitar.
Descanse em paz, minha vózinha e amiga querida! Muito obrigada por tudo! 

(07 de novembro de 2017, no Facebook)

Desbridamento

Separação é desbridamento.
Os meus dias tem sido esse eterno retirar de tecidos mortos e preparar do leito da ferida para a recuperação.
Dói. E sangra. E cansa. E às vezes eu não sei o que fazer com tanta coisa que eu sinto.
Eu preferia que fosse uma úlcera na pele, porque talvez se as pessoas vissem entendessem melhor.
Separação é luto. Morreram meus planos, minha rotina e um pedaço de mim que era "nós".
Agora sou só eu. Eu, os bichos e uma nova rotina. Espero que, em breve, novos planos para substituir os antigos.
Eu não quero parecer repetitiva, mas acho que toda separação é. A gente tem que tomar posse de si, dessa terra seca onde parece que nunca mais nada vai brotar e tem que lembrar de cuidar dela e plantar coisas boas com esperança de que vai chover um dia, mesmo que não tenha uma única nuvem no céu.
Tem um sol escaldante sobre mim, eu sou solo rachado, o ar a minha volta tem cheiro e gosto de poeira. E a ferida tá latejando.
Mas todos os dias eu me lembro de trocar as ataduras.


(13 de novembro de 2017, no Facebook)