segunda-feira, 9 de abril de 2018

Do dia 23

Eu tento buscar desesperadamente lembranças que estão o tempo inteiro tentando fugir.
No primeiro dia, nós lembramos de tudo, mas as horas se acumulam e quando a gente vê já se foram um, dois, três anos. As memórias precisam de mais concentração pra chegar. Qual era a cor dos seus olhos? Eu já não lembro com certeza... Só lembro que quando me olhavam transbordavam amor e não é exagero... Eu tive e tenho tantas dúvidas na minha vida, mas o amor da minha avó sempre esteve ali como uma rocha. Firme. Certo.
Às vezes, o cheiro dela preenche o ambiente e eu fico em dúvida se estou louca de vez ou se ela está comigo de verdade - o seu cheiro de livro, de igreja, cheiro de vó.
Hoje eu não tenho mais ninguém para discutir os romances da Agatha Christie que comprei pra nós duas, uma coleção inteira de mistérios que a gente devorava. Eles ficam me olhando da estante sempre que vou na casa dos meus pais, me lembrando de como a felicidade era fácil quando eu era criança e podia me esconder atrás da minha avó quando entrava algum vizinho no elevador. "Parece até bicho do mato!"
Dona Adélia me ensinou tanta coisa na vida... Eu bordava enquanto ela fazia crochê, eu roubava suas revistas de palavras cruzadas, eu fazia dedicatórias em livros que ela tinha comprado pra ela mesma só pra poder escrever que a amava. Quando as pessoas vão embora, a gente percebe que nunca disse o suficiente.
23 de fevereiro será sempre dela, porque foi quando eu aprendi a última lição que ela poderia me ensinar: a vida continua mesmo quando as coisas não acontecem como a gente gostaria.
Seguimos juntas, cada uma de um lado, unidas pelas bençãos de Nossa Senhora Aparecida. E, quando enfim nos encontrarmos, vai ser lindo... Só não vai ser mais lindo do que tudo que vivemos juntas enquanto nos foi possível.


(23 de fevereiro de 2017, no Facebook)

Nenhum comentário:

Postar um comentário